O
Centro de Detenção do Condado de Etowah em Gadsden, no Alabama, em 3 de
dezembro de 2011. Foto: Sarah Dudik / The Gadsden Times via AP
A TENSÃO AUMENTAVA dentro da prisão do Alabama. Um grupo de
novos detentos havia acabado de chegar no Centro de Detenção de Etowah, em
Gadsden, e um dos homens parecia doente. A notícia que se espalhava era que ele
e os outros haviam sido expostos ao coronavírus. Os detentos exigiram que os
recém-chegados fossem colocados em quarentena. Um jovem agente penitenciário
resistiu, dizendo aos homens que, se não obedecessem à ordem de voltar para as
celas, ele convocaria as “tropas”. Para os homens da unidade, as implicações
das palavras do policial eram claras.
Karim Golding, veterano da unidade, decidiu que
medidas desesperadas deveriam ser tomadas. O homem de 35 anos deslizou entre as
barras de uma grade do segundo andar. Ele amarrou uma ponta de uma corda de
lençóis no parapeito. Ele enrolou a outra ponta em um laço em volta do pescoço.
Tefsa Miller, de 39 anos, logo se juntou a ele e fez o mesmo. No lado oposto da
unidade, um homem transmitiu ao vivo a cena em seu celular, capturando um
momento que, de outra forma, não seria visto pelo mundo exterior. “Isso está a
ponto de se tornar um suicídio”, disse ele. “Os dois estão prestes a
se enforcar.”
Os homens não saltaram da
grade. As tropas nunca vieram. O plano de Golding pareceu funcionar, pelo menos
por um momento, forçando um diálogo entre detentos e funcionários da cadeia que
levou à resolução pacífica de um confronto acalorado. No entanto, os dramáticos
eventos que se desenrolaram na noite de 20 de março revelaram uma realidade
sombria: À medida que o coronavírus atinge o país, uma maré crescente de terror
e um profundo sentimento de abandono estão surgindo em seu sistema de detenção
de imigrantes.
“E daí se morrermos?
Essa é a atitude das pessoas aqui.”
Trancados em lugares fechados em todo o país, onde o distanciamento social é impossível e as falhas na prestação de cuidados médicos adequados vêm de longa data, dezenas de milhares de pessoas agora esperam o pior. Golding, em entrevista ao Intercept, disse que o ocorrido em Etowah no mês passado foi o ápice de anos de frustração por parte dos detentos de imigração e fiscalização aduaneira dos EUA na remota instalação do Alabama, frustrações que adquiriram uma urgência de vida ou morte com o coronavírus invadindo os Estados Unidos e se espalhando cada vez mais pelo sul do país. Apesar do protesto dramático do mês passado, o ICE continua a enviar detentos para a prisão do Alabama, incluindo indivíduos que passaram por instalações com infecções confirmadas por coronavírus.
Recentemente, as autoridades de Etowah
transformaram duas unidades em uma, praticamente dobrando o número de homens
que dividiam o espaço da noite para o dia.
“Somos as últimas pessoas a serem protegidas”,
disse Golding ao Intercept. “E daí se morrermos? Essa é a atitude das pessoas
aqui. Essa é a atitude do procurador-geral. Essa é a atitude do presidente.” As
ações do ICE nas últimas semanas revelaram um cálculo macabro que valoriza o
lucro carcerário sobre a vida humana, argumentou Golding. Por fim, ele disse:
“Enterros são mais baratos que deportações.”
O vídeo da ameaça suicida viralizou logo após ser
transmitido. O xerife do Condado de Etowah, Jonathon Horton, rapidamente o atacou,
definindo-o como uma farsa. O homem que
transmitiu o evento foi imediatamente colocado em bloqueio administrativo e, de
acordo com fontes internas do centro de detenção, ameaçado com acusações
criminais pelo uso de um celular contrabandeado. Em e-mail para o Intercept,
Bryan D. Cox, diretor de assuntos públicos do ICE na região sul, disse que o
“breve e pequeno protesto” era “baseado em informações imprecisas”. Cox
acrescentou: “Não há ninguém sob custódia do ICE nas instalações do Condado de
Etowah com suspeita de covid-19. Rumores do contrário são falsos e espalham o
medo desnecessariamente através de informações erradas.”
As prisões, cadeias locais e centros de detenção
são amplamente conhecidas por serem os principais vetores de doenças
infecciosas. Na semana passada, a Cadeia de Cook County, em Illinois, era “a maior fonte conhecida de infecções por coronavírus do país”, segundo uma análise do New York Times. No
complexo prisional da ilha Rikers, a taxa de infecção entre os detentos
foi sete vezes maior que a de Nova York, que atualmente abriga o maior número de casos
de coronavírus do planeta.
Capturas de tela de vídeo, transmitido ao vivo no Facebook por um
detento do Centro de Detenção Etowah, do protesto liderado por Karim Golding e
Tefsa Miller.
Até agora, o ICE registrou 80 casos
confirmados de covid-19 entre funcionários e detentos em mais de vinte
instalações e um hospital local distribuídos em 14 estados. Ao contrário de
outras agências com poder de polícia no sistema de justiça criminal, o ICE tem
amplo poder de decisão para libertar pessoas sob sua custódia por violações da
imigração civil a qualquer momento. No mês passado, mais de 3 mil médicos
assinaram uma carta aberta pedindo
à agência para fazer exatamente isso. Especialistas médicos do Departamento de
Segurança Interna, a agência que supervisiona o ICE, emitiram demandas
semelhantes, descrevendo o perigo potencial nos centros de detenção como
um “barril de pólvora”. Em março, uma ex-autoridade de alto escalão em direitos civis
do DHS disse que prevê que a atual postura do ICE resulte em mortes de
detentos.
À medida que aumentam as demandas generalizadas por
libertações de pessoas encarceradas, várias organizações legais têm apontado
para as instalações do ICE no sul, onde a agência tem um histórico particularmente ruim quando se trata de assistência médica.
Na semana passada, um juiz federal que
supervisionava um caso apresentado pelo Southern Poverty Law Center e pela
União Americana das Liberdades Civis da Louisiana ordenou que o
ICE divulgasse o número de detentos a que está concedendo e negando a
libertação em vários estados do sul, incluindo o Alabama, depois que documentos
do caso revelaram que a sucursal do ICE em Nova Orleans estava negando a
liberdade condicional dos detentos em níveis de até 100%. A propensão do ICE em
negar liberdade condicional a detentos, particularmente na era de Donald Trump,
já é bem documentada. Como o Intercept informou no início deste ano, a agência
foi acusada de manipular um software algorítmico para garantir que todos os que estão sob
custódia permaneçam presos.
Um e-mail para funcionários do congresso obtido pelo BuzzFeed News na
semana passada revelou que o ICE estava analisando os casos de cerca de 600
detentos de imigração que considerava particularmente vulneráveis ao
coronavírus – um número pequeno comparado aos milhares de indivíduos libertados
de prisões no sistema de justiça criminal em todo o país. Até agora, a agência
não ofereceu nenhuma indicação de que planeja libertar em larga escala as mais
de 35 mil pessoas atualmente sob sua custódia.
No caso de Etowah, a posição do ICE é que não há
nada acontecendo lá. “Resumindo: o ICE está seguindo os protocolos apropriados
do CDC para incluir o uso de EPI, triagem e testes e coorte de
pessoas”, escreveu Cox em e-mail ao Intercept. “Se você optar por escrever um
artigo aqui, a única versão factual é que a população da unidade está em baixa,
não há casos da doença e ela está em total conformidade com os protocolos do
CDC.”
“Não temos casos
confirmados porque não há ninguém sendo testado.”
À parte das preferências editoriais do ICE,
entrevistas com vários detentos e gravações de áudio de Etowah sugerem uma
realidade mais complicada. Os homens detidos pelo ICE descreveram uma
instalação que está fundamentalmente despreparada e aparentemente pouco
disposta a proteger aqueles que estão sob sua custódia. Entre os detentos,
existe uma sensação predominante de que os funcionários da prisão estão fazendo
o mínimo possível, seguindo apenas o estritamente necessário para dizer que
tomaram as medidas apropriadas caso ocorra um surto.
Para uma pessoa, fontes dentro de Etowah disseram a
mesma coisa sobre os responsáveis por mantê-las vivas: Eles não se
importam.
No final de março, dias após a ameaça de suicídio,
dezenas de detentos de Etowah solicitaram a realização de um exame por uma
enfermeira para o covid-19. “Nas últimas duas semanas, senti que tinha e
melhorei”, disse Golding. “Pedimos para fazer o teste, sabendo que eles não
tinham testes, apesar de nos dizerem que têm testes”. Golding enfatizou que
aquele era um exame simples, não um teste para o coronavírus. Golding contou
que a enfermeira disse que ele era “sintomático” e lhe forneceu Advil e
medicamentos para alergia. Vários outros detentos foram informados a mesma
coisa, acrescentou – nenhum foi colocado em quarentena.
O Intercept perguntou ao ICE e ao xerife Horton
sobre a alegação de que vários detentos haviam sido informados de que eram
sintomáticos ao vírus. “Se você tem um detento dizendo que a instituição
suspeita de casos, eles estão espalhando boatos imprecisos para você”, escreveu
Cox em e-mail. Embora o ICE não tenha relatado um caso confirmado de covid-19
em Etowah, os detentos temem que esse fato tenha algo a ver com as medidas que
a agência está tomando – ou não – para proteger proativamente as pessoas sob
sua custódia.
“Não temos casos confirmados porque não há ninguém
sendo testado aqui”, disse Golding.
Mensagem
na garrafa
Para Tefsa Miller, o homem que se juntou a Golding
no parapeito, a decisão de ameaçar o suicídio não foi uma farsa. “Esse foi o
último movimento de desespero da nossa parte – a única coisa que sabíamos que
era não-violenta e que poderia impedi-los de tentar nos fazer ir para as celas
com essas pessoas”, disse ele. Como pai de uma menina de 8 anos, Miller disse
que sua prioridade é viver para reencontrar sua filha. “Essas são as coisas que
me mantém lutando”, disse ele ao Intercept.
Tefsa Miller com sua filha em 2014. Foto: Cortesia de Tefsa Miller.
Miller compartilhou pela primeira vez sua história
sobre o que aconteceu dentro de Etowah com a Perilous
Chronicle, uma organização que acompanha revoltas prisionais em todo
o país. A Perilous Chronicle forneceu o áudio da chamada para o Intercept, e
Miller aprofundou o relato de sua experiência em entrevistas subsequentes ao
Intercept. A falta de cuidado com os detentos em Etowah era evidente na forma
como a prisão reagiu nos dias seguintes ao protesto do mês passado, argumentou.
“Eles deveriam ter enviado alguém para vir e falar conosco”, disse Miller.
“Ninguém veio.”
Se a instalação não está seguindo a rotina de
checar um detento que ameaçou tirar a própria vida, ele perguntou, por que
alguém deveria acreditar que eles estão tomando as medidas necessárias para
conter o coronavírus?
“Estamos tão longe demais de todo o resto, é como
se ninguém notasse”, disse Miller. “Ninguém sabe que estamos aqui, e só
esperamos poder sair daqui vivos”” Ele comparou a experiência a ficar preso em
uma ilha deserta, esperando ser resgatado.
“Sabe quando você coloca a mensagem na garrafa e
joga?” ele perguntou. “Esse vídeo é a mensagem na garrafa.” Jessica Vosburgh,
diretora executiva e jurídica do Centro Operário Adelante Alabama, com sede em
Birmingham, disse que, embora tenha visto a ameaça de suicídio em Etowah como
uma “tática de intensificação e um grito de socorro”, ela não foi um choque.
“As pessoas detidas em Etowah têm se organizado internamente tentando chamar
atenção para uma ampla gama de preocupações que têm afetado sua segurança
básica e bem-estar há muito tempo”, disse Vosburgh ao Intercept.
O Condado de Etowah tem um papel único na
arquitetura de detenção e deportação do ICE. Por mais de duas décadas, a
agência forneceu ao departamento do xerife local um fluxo constante de fundos
para abrigar centenas de detentos imigrantes de cada vez. “O contrato entre o
Condado de Etowah e o ICE tem uma das menores taxas diárias de qualquer um dos
contratos de serviços intergovernamentais em todo o país”, explicou Vosburgh.
Capitalizando as taxas baixas, o ICE transformou Etowah em um destino para
pessoas que estão no sistema a longo prazo — incluindo pessoas que têm raízes
de longa data no país e continuam a lutar na justiça, e pessoas apátridas cujos
países de origem estão tão abalados com conflitos civis que não podem aceitar
deportações. Nas palavras de Vosburgh, “é o depósito do ICE para detentos de
longo prazo.”
“Ninguém sabe que
estamos aqui, e só esperamos poder sair daqui vivos.”
Escondida no nordeste do Alabama, a instalação no
centro de Gadsden tem outras vantagens para o ICE e os carcereiros com quem
trabalha. “As pessoas estão mais distantes dos grandes centros urbanos que
tendem a ter mais serviços sociais e apoio jurídico gratuito”, explicou
Vosburgh, e como as pessoas que acabam em Etowah geralmente não são do Alabama,
elas também se afastam dos membros da família enquanto lutam na justiça. Não só
isso, “estamos em um distrito judicial e em um circuito de recursos que é muito
menos favorável aos direitos das pessoas detidas e não cidadãs”, acrescentou
Vosburgh, “por isso é um lugar mais barato para manter as pessoas detidas, é
mais fácil mantê-las detidas lá, e é bem conhecido por ter condições tão
horríveis que as pessoas simplesmente desistem.”
Vosburgh recentemente detalhou essas condições, e
sua relevância para o coronavírus, em uma declaração judicial juramentada. Ela descreveu a falta de “materiais básicos de limpeza para manter a
higiene pessoal, manter seus espaços de convivência e comunitários limpos”; a
ausência de um médico no local; tempos de espera de várias semanas para ver uma
enfermeira; e múltiplos casos de funcionários da prisão ignorando ou deixando
de responder às preocupações de saúde levantadas pelos detentos ao longo dos
anos, às vezes com consequências fatais.
“Etowah tem um longo e péssimo registro de cuidados
médicos”, disse Vosburgh. “Pessoas já morreram como resultado de condições
relativamente simples que não foram tratadas.” Para piorar as coisas,
acrescentou, os funcionários das prisões do condado têm, por vezes, lutado com
questões de transparência e ética. Em 2018, por exemplo, o Birmingham
News revelou que Todd Entrekin, então xerife do condado de Etowah,
havia embolsado mais de 1,5 milhão de dólares em fundos governamentais destinados
à alimentação de detentos sob sua custódia. Entrekin e sua esposa usaram uma
parte dos fundos para comprar uma casa de praia. O xerife,
que junto com os republicanos do Alabama lutaram agressivamente para manter os
dólares federais entrando mesmo depois que ficou claro que a instalação estava
falhando em cumprir praticamente todos os padrões de detenção do ICE, citou uma
lei do tempo da Grande Depressão em defesa de sua fraude por baixo dos panos. Ele perdeu sua
candidatura à reeleição em 2018, abrindo caminho para Horton, o atual xerife.
“Há uma longa história de corrupção nesse condado”,
explicou Vosburgh. “Então é meio difícil aceitar qualquer coisa que o xerife ou
outros funcionários da prisão estejam dizendo.”
“Michael”, um detento de Etowah que pediu que seu
nome verdadeiro não fosse publicado por medo de retaliação em seu caso de
imigração, estava entre os detentos que se encontraram com uma enfermeira
recentemente. Aos 29 anos, Michael tem anemia falciforme e bronquite crônica,
condições que aumentaram seu medo de contrair o covid-19. Para ele, respirar é
uma luta diária. “Tendo o vírus, eu certamente, certamente estaria em apuros”,
disse ele.
Michael disse ao Intercept que seu exame consistia
em uma verificação de temperatura e de seus sinais vitais. “Achei que seria
mais do que isso”, disse ele. Saindo, ele sentiu como se tivesse sido tratado
de qualquer jeito. “Eu sinto que eles fizeram isso só para dizer: ‘Tudo bem,
nós fizemos alguma coisa. Vocês não podem dizer aos advogados de vocês que não
fizemos nada.’” Como Golding, Michael disse que não acredita que haja testes
suficientes acontecendo dentro de Etowah para dizer com confiança que o
covid-19 não entrou na instalação. E fora isso, acrescentou, os detentos
sofreram hostilidade por terem solicitado os exames.
Normalmente, explica Michael, a equipe médica chama
os detentos para consultas. Desta vez, todos que queriam ser examinados
primeiro tiveram que ter uma conversa com um capitão da prisão. “Senti que
estava sendo interrogado”, lembrou Michael. Ele insistiu em seu direito de ser
examinado, conta, dizendo ao capitão: “Tenho meus problemas de saúde, então
estou com muito medo.” O interrogatório o deixou abalado.
“Como ele pode ficar bravo quando se trata de uma
situação de vida ou morte?” Michael perguntou. “As pessoas estão morrendo aos
milhares nas ruas.”
“Como você quer que eu
limpe se não há suprimentos?”
A instalação de Etowah, onde ocorreu o protesto do
mês passado, é conhecida por sua unidade, disseram fontes internas ao
Intercept. Muitos dos detentos viveram nos EUA a maior parte de suas vidas, e
eles se orgulham de entender seus direitos. Os homens da unidade tomam conta de
si mesmos para limpar as áreas comuns e fazer reparos. Michael é um dos
trabalhadores da unidade — “um trabalhador voluntário”, ressaltou. “Eles não
nos pagam por nada aqui.”
Como trabalhador, Michael tem mais interações do
que a maioria com os oficiais que vigiam a unidade. Nos últimos dias, ele
disse, esses oficiais têm compartilhado seus próprios medos de contrair o
vírus, e suas preocupações de que os altos funcionários da prisão não estão
fazendo o suficiente para protegê-los. Na semana passada, eles começaram a usar
máscaras. Os detentos também receberam máscaras recentemente, e lhes foi dito
que se não as usassem, seriam colocados em um confinamento de 23 horas de
duração. Ainda assim, Michael disse, metade dos oficiais, “assim que eles
chegam aqui, eles tiram”. Manter a unidade limpa era um desafio antes do coronavírus,
acrescentou Michael. Entregas de sabão, por exemplo, deveriam ocorrer uma vez
por semana, mas muitas vezes ocorrem mesmo a cada duas ou três semanas. Um
guarda distribui a entrega, que de acordo com Michael, geralmente é suficiente
para cerca de 30 detentos. “Há cento e poucos nesta unidade, e eles não os
deixam sair ao mesmo tempo”, explicou Michael. “Assim que [o sabão] chega, já
acabou.”
“Toda semana nos falta isso, não temos aquilo, ou
estamos esperando o caminhão chegar”, disse Michael. “Temos que discutir com
eles todos os dias. Como você quer que eu limpe se não há suprimentos?”
Há duas televisões na unidade onde Michael e os
outros vivem, e eles estão constantemente sintonizados com as notícias. “A
coisa mais importante agora é o que está acontecendo no mundo”, disse ele. “É
assustador porque eles estão dizendo que este é o cemitério, basicamente,
apenas por estar encarcerado.” Como vários outros detentos em sua unidade,
Michael é de Nova York, e sua família reside em algumas das comunidades mais
atingidas pelo coronavírus.
“Recentemente perdi uma tia e um primo para o
vírus”, disse ele. Mais três parentes estão doentes com o covid-19,
acrescentou. “Nós apenas rezamos.” Sem conselheiros ou capelães, lidar com o
peso emocional do momento presente dentro de Etowah é extraordinariamente
difícil. “Você pede apoio psicológico”, ele disse, “eles não têm nada.”
Muitos dos homens trancados em sua unidade nunca
experimentaram o encarceramento antes, explicou. Eles são requerentes de asilo
ou ficaram além do prazo de seus vistos. Muitas vezes, eles não falam inglês e
lutam para pagar as taxas necessárias para telefonar para casa. “Parece que
ninguém se importa”, disse Michael. “Ninguém pergunta se eles estão bem.”
“Temos certos trabalhadores que falam outras línguas, então tentamos ajudar”,
explicou. Ainda assim, “não há muito mais que possamos fazer.”
O
Buraco Negro
Para Golding, a função de Etowah é muito clara.
“Este é o lugar para onde eles te mandam quando querem te ferrar”, disse ele.
“Este é o buraco negro. Todo o sistema está trabalhando para manter essa
instalação aberta porque esse dinheiro é deles.””
“Esta é a política em sua forma mais plena”,
acrescentou Golding. Essas políticas, e o dinheiro que representam, não estão
parando para o coronavírus. Pelo contrário, ele disse, tudo funciona
normalmente do lado de dentro.
Golding veio para os EUA da Jamaica quando tinha 9
anos. Ele cresceu no Queens, em Nova York. Quando tinha 21 anos, foi preso por
vender base de cocaína e duas pistolas para uma equipe policial disfarçada. Ele
foi condenado a 20 anos, que foram reduzidos para 10 anos após dois recursos
bem sucedidos. Golding cumpriu sua pena na prisão federal e, segundo ele, mudou
sua vida. Ele se educou e se comprometeu a se organizar sem violência atrás das
grades. “Meu papel é garantir que ninguém se machuque quando houver um
problema”, disse ele. Golding está sob custódia do ICE desde 2016, lutando e
apelando em seu processo. O problema, argumentou, é que a reabilitação não é um
fator que o ICE considera ao avaliar se deve liberar um indivíduo da custódia.
“Não estou dizendo que todos merecem ser deportados ou que todos merecem
ficar”, disse ele. “Mas se você se redimiu, você deve ter essa oportunidade.”
Karim Golding,
fotografado antes de sua prisão há 13 anos.
Foto: Cortesia
de Karim Golding
Sem esse tipo de considerações, pessoas com
condenações criminais anteriores sob custódia do ICE tornam-se a população
menos provável de receber auxílio durante uma crise como a pandemia atual. “O
ICE pagando seu contrato é como essa prisão sobrevive”, disse Golding. “Caso
contrário, sem esse contrato, esta prisão não estaria funcionando. Então os
políticos por aqui mantêm esta prisão aberta. Eles vão para Washington, eles
lutam por esta prisão, eles fazem o que têm que fazer por esta prisão.”
Lycoln Danglar, residente permanente legal de 31
anos que viveu nos EUA por mais da metade de sua vida, ecoou as preocupações de
Golding. O procurador-geral William P. Barr ordenou recentemente ao
Departamento Penitenciário que ampliasse o grupo de presos federais elegíveis
para a libertação antecipada à luz do coronavírus. Nada comparável a isso está
acontecendo para os detentos do ICE, argumentou Danglar.
“Não há pressão aplicada aos detentos civis,
pessoas que já cumpriram sua pena, pessoas que já pagaram suas dívidas com a
sociedade”, disse ele. “Minha filha é uma cidadã americana. Minha mãe e meu pai
são cidadãos. Meus irmãos são cidadãos, meus tios são cidadãos – porra, quase
toda a minha família é cidadã americana. E eles são excelentes cidadãos, pagam
seus impostos em dia e eu paguei meus impostos desde que entrei neste país.
Mas, ainda assim, não sou tratado como igual. Cometi um erro. Fui preso uma
vez. Condenado uma vez.” Aquele erro não deveria custar sua vida, disse
Danglar.
“Estou lutando pela minha vida dos dois lados”,
disse ele. “Estou lutando pela minha vida lidando com esse problema do
coronavírus, e estou lutando pela minha vida tentando voltar para casa para
minha família.”
“A mensagem dele para
nós era que o distanciamento social é, basicamente, apenas para as pessoas no
mundo livre.”
Após o confronto do mês passado, os detentos do ICE
em Etowah foram testemunhas de uma série de mudanças desconcertantes em seu
dia-a-dia. No início deste mês, um médico abordou cerca de meia dúzia de homens
na unidade, dizendo-lhes que, como sua unidade não estava cheia, eles tinham o
espaço necessário para se manterem seguros. “A mensagem dele para nós era que o
distanciamento social é, basicamente, apenas para as pessoas no mundo livre, e
este é o lugar mais seguro para estarmos agora”, lembrou Golding. Os homens da
unidade sabiam que na ausência de acesso a sabão, luvas, máscaras e outros
suprimentos, o conselho do médico seria insuficiente. “Estávamos acompanhando
tudo dia após dia”, explicou Golding. “Sabemos o que o CDC está dizendo.”
Em 23 de março, os defensores da campanha Shut Down
Etowah enviaram uma carta a Horton exigindo que seu escritório “desenvolva,
execute e divulgue publicamente planos proativos e baseados em evidências para
a prevenção e gestão do covid-19”. Horton, também, sugeriu que o espaço dado
aos detentos do ICE fornecia uma medida de segurança. “Estamos tão agradecidos
e orando para manter o covid-19 longe de nossa prisão”, escreveu o xerife.
“Como você pode imaginar, a cadeia tem proximidade com todos os que estão
alojados dentro e torna o distanciamento social uma tarefa, portanto é nosso dever
máximo fazer com que nós examinemos minuciosamente todas as entradas, bem como
os agentes penitenciários.”
A cadeia não tinha “nenhum teste positivo” para
detentos, detentos ou funcionários. “Temos uma área de quarentena reservada, se
esse caso surgir”, escreveu Horton. “Nossa contagem de detentos do ICE é
extremamente baixa, menos de 130 ocupando duas unidades com muito espaço.”
Quatro dias depois que Horton escreveu o e-mail, a
prisão mudou de direção, movendo uma unidade adicional de detentos do ICE para
a unidade de Golding. “Eles apenas dobraram a população, basicamente nos
empilharam todos juntos”, disse Golding. “Agora, em vez de 56 pessoas, são 114
pessoas aqui.” Enquanto os homens da unidade costumavam ter liberdade para
andar livremente a maior parte do dia, eles agora estão sendo liberados em
grupos escalonados por períodos limitados de tempo. “Todo mundo está usando
esse tempo para sair”, disse Golding. “Então agora você tem 60 caras em uma
área comum, e tendo que usar os mesmos banheiros, tendo que usar os mesmos
chuveiros.”
“Não há protocolo de limpeza”, disse ele. “Usamos
as mesmas mesas, os mesmos chuveiros, os mesmos banheiros, tudo igual.” Eles
também respiram o mesmo ar. “Você não pode colocar as pessoas em quarentena em
uma prisão com um sistema de ventilação central”, disse Golding. “Se eles
pulverizarem gás de pimenta na Unidade 5, podemos sentir o cheiro vindo através
da ventilação.”
O Intercept perguntou repetidamente ao ICE e ao
departamento do xerife por que os detentos do ICE em Etowah estavam todos
postos juntos. Nenhuma resposta foi dada. “Isso simplesmente não é algo que
discutimos devido a razões de segurança operacional”, disse Cox, funcionário de
assuntos públicos do ICE, por e-mail.
Além de juntar seus detentos em Etowah, o ICE continuou
a realocar as pessoas através de suas várias prisões e centros de detenção em
todo o país.”Os ônibus vêm da Louisiana, Chattanooga, Atlanta. Aviões estão
voando de Nova York para a Louisiana”, disse Golding. “O ICE definitivamente
não fechou sua parte do negócio.” Entre os recém-chegados, disse Golding,
estavam homens que tinham sido detentos ou entraram em contato com indivíduos
em instalações em Nova Jersey e na Louisiana, onde o ICE confirmou
infecções por coronavírus entre detentos e funcionários.
Em áudio obtido pelo Intercept, três recém-chegados
a Etowah descreveram como o processo de transporte do ICE tem sido no meio da
pandemia.
Os homens faziam parte de um grupo de detentos do
ICE que foram realocados da prisão de Howard County em Maryland no final de
março. Sua viagem começou com uma viagem de ônibus para a Pensilvânia, onde
embarcaram em um avião com mais de 100 outros detentos, muitos dos quais foram
transportados para o aeroporto em ônibus com placas de Nova York. O avião estava
lotado, disseram os homens, com não mais que quatro assentos não preenchidos.
Cerca de metade dos detentos tinham máscaras. Antes do embarque, os homens
disseram que seu exame médico consistia em ter suas temperaturas verificadas e
serem perguntados se tinham sintomas do covid-19.
Confusos com o porquê de terem voado para fora de
Maryland, cada um dos homens independentemente descreveu ter sido informado de
que, devido ao vírus, as instalações do ICE na Louisiana e no Alabama eram os
únicos lugares que os aceitariam.
O ICE negou que os homens teriam recebido essa
informação. “Quem quer que lhe tenha dito que o Alabama e a Louisiana são os
únicos locais para onde o ICE está movendo detentos lhe deu informações
falsas”, disse Cox por e-mail. “As operações continuam em todo o país.” Ele
acrescentou que “as pessoas que espalham irresponsavelmente a desinformação
fazem um desserviço às comunidades que afirmam representar”.
Observar o Queens, onde cresceu, se tornar o “epicentro do epicentro” tem
sido difícil.
“É onde eu quero estar.”
Dario Gutierrez, um homem de 29 anos de Maryland,
disse que quando viajavam por terra, os detentos podiam ver que o mundo
exterior estava em grande parte fechado. Dentro do ônibus, era como se nada
tivesse mudado. Eles foram algemados o tempo todo. “Nenhum distanciamento
social”, disse Gutierrez. “Algumas pessoas estavam tossindo, espirrando – nada.
Sem desinfetantes para as mãos. Nada.” Os homens foram levados para o Centro de
Processamento LaSalle do ICE em Jena, na Louisiana. “Vocês nunca deveriam ter
saído de onde estavam”, Gutierrez lembrou de um oficial dizendo. Sua chegada
desencadeou um motim entre os detentos que já estavam lá. “Havia muito medo
entre eles”, disse Mumfred Amimi, de 27 anos. Os detentos de LaSalle
conseguiram empurrar os recém-chegados para fora de sua unidade. Amimi lembrou
de assistir a uma onda de oficiais da SWAT trabalhando para o GEO Group, a
corporação com fins lucrativos que administra as instalações, aglomerando-se
sobre quem protestava.
“Eu podia ver a polícia de choque vindo com
escudos”, disse Amimi. A equipe de segurança privada estava carregando armas de
paintball e uma enorme máquina de fumaça, disse Amimi, bem como “bastões
grandes de 1,80 m — uns 50 deles”.
Incapazes de permanecer na instalação em Jena, os
homens foram transferidos novamente, desta vez para Etowah. Faruk Ibrahim, de
45 anos, que tem pressão alta, colesterol alto e diabetes, disse que não culpou
os detentos nos centros de detenção do ICE por rechaçarem a introdução dos
recém-chegados. O que Ibrahim não conseguia entender, disse ele, era por que
ele tinha sido enviado para o outro lado do país e exposto a milhares de
pessoas no meio de uma pandemia global. “Quando um presidente dá uma ordem de
distância social, acho que essa ordem deveria ter sido seguida”, disse ele.
“Eles não deveriam ter colocado minha vida em risco, sabendo o que sabem sobre
esse vírus. Essa é a parte realmente absurda para mim, que qualquer indivíduo
que ouve as notícias ou assiste às notícias colocaria a vida de alguém em
risco.”
“Eu sou um ser humano, detento ou não detento, não
acho que mereço ser tratado dessa maneira”, disse ele. “Tenho uma filha de 3
anos, uma cidadã americana. Tenho um filho de 21 anos, um cidadão americano. E
ver minha vida sendo vista desta forma, foi simplesmente absurdo para mim.”
A contagem de infecções confirmadas do covid-19
dentro das prisões e centros de detenção do ICE parece crescer a cada dia –
elas mais do que dobraram no curso da escrita deste texto. À medida que a
perspectiva de um surto grave, e a morte que o acompanharia, torna-se cada vez
mais provável, certas jurisdições optaram por cortar seus laços carcerários com
o ICE. Recentemente, o Condado de Monroe, na Flórida, optou por encerrar seu
contrato com a agência após mais de duas décadas, realocando silenciosamente
cerca de 50 detentos na calada da noite. “Isso nunca acontecerá nesta
instalação”, disse Golding.
Observar o Queens, a comunidade onde cresceu,
tornar-se o “epicentro do epicentro” do coronavírus tem sido particularmente
difícil, explicou Golding. “O engraçado é que é onde eu quero estar,
independentemente do que está acontecendo agora”, disse Golding. “Há pessoas
idosas em Nova York agora que não podem obter seus medicamentos. Eles não podem
ir à farmácia. Eles vivem sozinhos. Quem está vendo se eles estão bem?”
“Para mim, não se trata apenas de sair da cadeia –
eu poderia estar em casa agora ajudando as pessoas”, disse Golding. Homens como
ele têm sido tratados como uma ameaça à segurança pública, disse ele, como uma
casta de pessoas que deve algo à sociedade por cometer um crime ou pela falta
de documentos. Se for esse o caso, ele argumentou, “deixem que eu me redima”.
Fonte: Tradução: Maíra Santos / TI Brasil