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Bolsonaro escolheu um ministro
cujas ideias para o combate à pandemia são diametralmente opostas às suas e
plenamente alinhadas às do ex-ministro Mandetta e da OMS. Se o principal motivo
da insatisfação de Bolsonaro com Mandetta era a sua defesa intransigente do
isolamento horizontal, por que então colocou alguém que pensa exatamente igual?
Apesar de lógica e óbvia, a pergunta não é sensata quando se trata de um
presidente que não se move pela razão, mas pelos delírios forjados nas
informações que lê no WhatsApp. É difícil interpretar as ações provenientes de
uma mente povoada por conspirações e misticismos.
O Ministério da Saúde, como se sabe, está sob
a tutela dos militares, que querem que a pasta siga critérios científicos e
rejeitam a possibilidade de um ministro olavista. Foram eles que garantiram
a manutenção do ministro quando Bolsonaro ameaçou demiti-lo publicamente.
O problema foi que Mandetta cansou de sustentar o teatro armado junto a
Bolsonaro. Durante o dia, Mandetta dizia que os brasileiros deviam seguir as
recomendações da OMS. À noite, Bolsonaro aparecia em pronunciamento oficial
falando que o povo devia voltar às ruas.
Mandetta, que antes tentava amenizar dizendo que
estava alinhado ao presidente mesmo evidentemente não estando, passou então a
ser mais duro nas declarações e decidiu dar uma entrevista exclusiva para a
Globo, emissora que Bolsonaro considera inimiga. O ex-ministro, que é
correligionário de Rodrigo Maia, outro antagonista do presidente, cavou a sua demissão
ao entrar no jogo da politicagem iniciada por Bolsonaro. De repente, ele virou
o maior defensor do SUS e passou a deixar as críticas ao presidente cada vez
menos veladas. Isso fez com que ele perdesse o apoio de militares e o cargo.
Essa era provavelmente a intenção de Mandetta, que já parecia cansado de manter
o jogo de aparências enquanto seu trabalho era boicotado pelo presidente.
Na ameaça de demissão que fez a Mandetta há duas
semanas, Bolsonaro afirmou não ter “medo de usar a caneta, nem pavor”. Apesar
dessa suposta demonstração de coragem, a caneta para demitir só funcionou
depois do aval dos militares. Já o pavor de usá-la ficou evidente na hora de
escolher o novo ministro. Explico. Considerado pelo Washington Post como “o
pior líder do mundo” no combate ao coronavírus, Bolsonaro está encurralado como
nunca esteve. A atuação no enfrentamento à pandemia aprofundou o seu isolamento
interno e internacional. Pressionado pelos governadores, pela Câmara, pelos
militares e pela opinião da maioria dos brasileiros — mais da metade acredita
que ele mais atrapalha do que ajuda o combate à pandemia —, Bolsonaro
foi obrigado a escolher outro ministro com perfil técnico. A escolha de um
ministro olavista, que contrariasse as recomendações da OMS, poderia ser fatal
para a continuidade do seu mandato.
Durante semanas, Mandetta não teve paz para
trabalhar. O processo de troca foi arrastado pelo presidente, que promoveu uma
guerra contra o ministro, paralisando o ministério na última semana. Todo esse
boicote foi feito para depois se trocar seis por meia dúzia. A dúvida é: o quão
disposto está Nelson Teich para manter a pantomima? Trabalhar se fiando pela
ciência e, ao mesmo tempo, proteger a narrativa anti-científica do presidente é
uma tarefa que poucos têm estômago para enfrentar. Mandetta bem que tentou por
um tempo.
Hoje, os principais adversários políticos de
Bolsonaro não são os políticos de oposição, mas os governadores e os outros
poderes da União. O Estado de direito e a democracia federativa — chamados pela
extrema direita de “sistema” e “establishment” — são hoje considerados inimigos
do Planalto.
Em entrevista à CNN Brasil após a
nomeação do ministro, Bolsonaro passou a atacar Rodrigo Maia e os governadores.
Mais tarde, a Folha noticiou que Bolsonaro contou para parlamentares
que está sendo vítima de um complô. Afirmou que recebeu um dossiê com
informações da ABIN de que Rodrigo Maia, João Doria e parte dos
ministros do STF estão tramando um golpe de estado contra ele. Ou seja,
involuntariamente, Bolsonaro confessa que a agência de inteligência do governo
está espionando outros poderes e um governador — um crime gravíssimo, passível
de impeachment. Pode ser mais uma mentira para alimentar a paranoia da tropa,
como também pode ser verdade. Bolsonaro já afirmou que apresentaria provas que
as últimas eleições foram fraudadas, mas nunca as apresentou. Da mesma forma
que se recusa a apresentar o resultado do seu exame para a covid-19, mesmo que
pareça estar chapado de cloroquina em todas as últimas aparições públicas.
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Os principais pontos de
conflito entre Bolsonaro e Mandetta vão continuar existindo com o novo
ministro.
Apesar de garantir que guiará as ações do
ministério com base em critérios científicos, Nelson Teich fez um péssimo
pronunciamento de estreia. Pouco objetivo, confuso, mas tentando transparecer
alguma firmeza, o novo ministro da Saúde parecia estar assumindo o Ministério
da Economia: “O desenvolvimento econômico arrasta outras coisas. Quanto mais se
desenvolve, mais se investe em educação e saúde. (…) Discutir saúde e economia
separado não dá. Ambos são complementares”. A gente já sabe o que está embutido
nesse discurso: a relativização da vida humana. É o que Bolsonaro vem pregando
em nome da salvação de uma economia que, não, não “estava decolando” antes da
crise na saúde.
Apesar das falas alinhadas ao chefe, desde o início
da pandemia o novo ministro tem dado declarações que enfureceriam
Bolsonaro se fossem feitas hoje. Em um artigo, Teich afirmou que “o
isolamento horizontal é uma estratégia que permite ganhar tempo para entender
melhor a doença e para implantar medidas que permitam a retomada econômica do
país”. Em outro, apontou a falsa dicotomia entre saúde e economia — a
mesma que ele endossou durante a posse: “Esse tipo de problema (a falsa
dicotomia entre saúde e economia) é desastroso porque trata estratégias
complementares e sinérgicas como se fossem antagônicas. A situação foi
conduzida de uma forma inadequada, como se tivéssemos que fazer escolhas entre
pessoas e dinheiro, entre pacientes e empresas, entre o bem e o mal”.
Os principais pontos de conflito entre Bolsonaro e
Mandetta vão continuar existindo com o novo ministro. Para Teich, a gestão de
Mandetta vinha sendo “perfeita”: “Felizmente, apesar de todos os problemas, a
condução até o momento foi perfeita. Pacientes e sociedade foram priorizados e
medidas voltadas para o controle da doença foram tomadas”.
Para o presidente, a vida humana nunca aparece como
um valor absoluto, sempre está acompanhada por alguma conjunção adversativa. Em
pronunciamento feito há duas semanas, Bolsonaro afirmou: “A vida em
primeiro lugar, MAS, sem emprego, a sociedade enfrentará um problema tão grave
quanto a doença: a miséria”. Nessa semana, ele voltou à baila da relativização
da vida humana: “A vida não tem preço, MAS economia e emprego tem que voltar à
normalidade”. Durante a sua última live, justificou a saída de Mandetta ao
dizer que sua gestão “era voltada quase exclusivamente para a questão da vida.”
Por enquanto, Bolsonaro poderá ficar mais aliviado.
A popularidade de Mandetta, bem maior que a dele, já não é mais um problema.
Agora ele tem um ministro menos popular, com o carisma de um pé de alface e que
até agora tem se esforçado para não derrubar as narrativas fabricadas pelo
“gabinete do ódio” ou do Planalto. Conter a disseminação do vírus não é o
principal objetivo de Bolsonaro, mas, sim, a sua reeleição. Todas suas ações
durante a pandemia, inclusive a troca de ministros, foram claramente calculadas
visando alimentar narrativas eleitorais. A mudança no MS deixou isso bastante
evidente: trocou seis por meia dúzia e mudou para continuar tudo como está. Não
foi uma troca motivada pela incompetência técnica de Mandetta, mas pela ameaça
política que ele passou a representar. O cálculo é eleitoral: tira um ministro
popular e coloca um desconhecido que não faz parte da política e não tem as
mesmas pretensões eleitorais de Mandetta.
Resta saber se Teich vai atingir o equilíbrio entre agradar o
anticientificismo de Bolsonaro e cuidar da saúde da população se fiando pela
ciência. Spoiler: não vai, porque isso é inatingível. Ou se toma o remédio
receitado pelo médico ou o chazinho milagroso do curandeiro. Agora, é só
aguardar pela próxima crise.
TI Brasi