FLÁVIO
BOLSONARO FINANCIOU e lucrou com a construção
ilegal de prédios erguidos pela milícia usando dinheiro público. É o que
mostram documentos sigilosos e dados levantados pelo Ministério Público do
Rio de Janeiro aos quais o Intercept teve
acesso. A investigação preocupa a família Bolsonaro – os advogados do
senador já pediram por nove vezes que o procedimento seja suspenso.
O investimento
para as edificações levantadas por três construtoras foi feito com
dinheiro de “rachadinha”, coletado no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro
na Assembleia Legislativa do Rio, como afirmam promotores e
investigadores sob a condição de anonimato. O andamento das investigações
que fecham o cerco contra o filho de Jair Bolsonaro é um dos motivos para
que o presidente tenha pressionado o ex-ministro Sergio Moro pela troca do
comando da Polícia Federal no Rio, que também investiga o caso, e em
Brasília.
O inquérito do
Ministério Público do Rio, que apura fatos de organização criminosa,
lavagem de dinheiro e peculato (desvio de dinheiro público) pelo filho de
Bolsonaro segue em sigilo. O Intercept teve acesso à íntegra da
investigação. Os investigadores dizem que chegaram à conclusão com o
cruzamento de informações bancárias de 86 pessoas suspeitas de envolvimento
no esquema ilegal, que serviu para irrigar o ramo imobiliário da milícia.
Os dados mostrariam que o hoje senador receberia o lucro do investimento
dos prédios, de acordo com os investigadores, através de repasses feitos
pelo ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega – executado em fevereiro – e
pelo ex-assessor Fabrício Queiroz.
Trecho da denúncia do Ministério Público que tornou o capitão Adriano
Magalhães da Nóbrega foragido da Justiça. Essa denúncia serviu de base para
o inquérito das rachadinhas
O esquema
funcionaria assim:
• Flávio pagava os
salários de seus funcionários com
a verba do seu gabinete na Alerj.
• A partir daí,
Queiroz – apontado no inquérito como articulador do esquema de rachadinhas
– confiscava em média 40% dos vencimentos dos servidores e repassava parte
do dinheiro ao ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, apontado como chefe
do Escritório do Crime, uma milícia especializada em assassinatos por
encomenda.
• A organização
criminosa também atua nas cobranças de “taxas de segurança”, ágio na venda
de botijões de gás, garrafões de água, exploração de sinal clandestino de
TV, grilagem de terras e na construção civil em Rio das Pedras e Muzema.
• As duas favelas,
onde vivem mais de 80 mil pessoas, ficam em Jacarepaguá, na zona oeste do
Rio, e assistiram a um boom de construções de prédios irregulares nos
últimos anos. Em abril do ano passado, dois desses prédios ligados a outras
milícias desabaram, deixando 24 mortos e dez feridos.
• O lucro com a
construção e venda dos prédios seria dividido, também, com Flávio
Bolsonaro, segundo as investigações, por ser o financiador do esquema
usando dinheiro público.
Condecorado por
Flávio Bolsonaro com a Medalha Tiradentes, principal honraria do Rio, o
ex-caveira Adriano da Nóbrega foi morto a tiros em fevereiro em
um controverso cerco policial no interior da Bahia com indícios de queima
de arquivo. Foragido da Justiça, o ex-capitão estava escondido no sítio de
um vereador bolsonarista. Os diversos celulares do miliciano ainda aguardam
por perícia.
As investigações do MP revelaram que os repasses da
rachadinha chegavam às mãos do capitão Adriano por meio de contas usadas
por sua mãe, Raimunda Veras Magalhães, e sua esposa, Danielle da Costa
Nóbrega. As duas ocupavam cargos comissionados no gabinete do deputado na
Alerj entre 2016 e 2017. Ambas nomeadas por Queiroz, amigo do ex-capitão
dos tempos de 18º batalhão da Polícia Militar, Jacarepaguá.
Segundo o MP, a mãe
e a mulher de Adriano movimentaram ao menos R$ 1,1 milhão no período
analisado pela investigação, amealhado com o esquema de rachadinha por meio
de contas bancárias e repasses em dinheiro a empresas, dentre as quais dois
restaurantes, uma loja de material de construção e três pequenas
construtoras.
Com sede em Rio das
Pedras, as construtoras São Felipe Construção Civil Eireli, São Jorge
Construção Civil Eireli e ConstruRioMZ foram registradas, segundo o MP, em
nome de “laranjas” do Escritório do Crime. O dinheiro então chegava aos
canteiros de obras ilegais por meio de repasses feitos pelo ex-capitão aos
laranjas das empresas.
Trecho de interceptação detalha registro da construtora em nome de
laranja.
O papel de
“investidor” nas construções da milícia ajudaria a explicar a evolução
patrimonial de Flávio Bolsonaro, que teve um salto entre os anos de 2015 e
2017 com a aquisição de dois apartamentos: um no bairro de Laranjeiras e
outro em Copacabana, ambos na zona sul do Rio. Os investimentos também
permitiram a compra de participação
societária numa franquia da loja de chocolates Kopenhagen.
Flávio entrou na
vida política em 2002, com apenas um carro Gol 1.0, declarado por R$ 25,5
mil. Na última declaração de bens, de 2018, o senador disse ter R$ 1,74
milhão. A elevação patrimonial coincide com o período em que a mãe e a
mulher do ex-capitão estavam nomeadas em seu gabinete.
O papel de Adriano
A ligação do
ex-capitão com as pequenas empreiteiras envolvidas no boom da
verticalização em Rio das Pedras e Muzema foi levantada em meio à
investigação sobre as execuções da vereadora Marielle Franco e de seu
motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018. Foi a partir
das quebras de sigilos telefônicos e telemáticos dos integrantes do
Escritório do Crime que os promotores descobriram que o grupo paramilitar
havia evoluído da grilagem de terras à construção civil, erguendo prédios
irregulares na região e, assim, multiplicando seus lucros.
Adriano da Nóbrega
e dois outros oficiais da PM integrantes do grupo – o tenente reformado,
Maurício da Silva Costa, e o major Ronald Paulo Alves Pereira – usaram,
segundo os promotores, nomes de moradores de Rio das Pedras para registrar
as construtoras na junta comercial do Rio de Janeiro. A estratégia de usar
“laranjas”, segundo o MP, foi adotada para tentar dar legitimidade às
atividades do Escritório do Crime na construção civil.
A descoberta foi
usada pelos promotores como base para a abertura do inquérito que resultou
na Operação Intocáveis – nome escolhido numa referência às patentes de
oficiais da Polícia Militar ostentadas pelos chefes da organização
criminosa. A ação contra a milícia foi coordenada pelo Grupo de Atuação
Especial de Combate ao Crime Organizado do MP, o Gaeco, e desencadeada, em
janeiro de 2019, como forma de fechar o cerco à milícia suspeita de
arregimentar os assassinos da vereadora do PSOL. Na ocasião, o ex-capitão
Adriano e outros 12 suspeitos tiveram as prisões decretadas.
Trecho da denúncia cita a milícia de Adriano, construções e empresas
em nome de laranjas.
Dados do inquérito
a que tive acesso comprovam que Adriano, Costa e Pereira eram os “donos
ocultos” das construtoras ConstruRioMZ, São Felipe Construção Civil e São
Jorge Construção Civil. As três empresas foram registradas na junta
comercial no segundo semestre de 2018, respectivamente, em nome Isamar
Moura, Benedito Aurélio Carvalho e Gerardo Mascarenhas, conhecido como
Pirata. Os três “laranjas” foram presos na operação policial, juntamente
com os oficiais da PM Costa e Pereira.
Numa das
interceptações, o miliciano Manoel de Brito Batista, que atuava como uma espécie
de gerente das obras, alerta em tom ameaçador a um interlocutor que o
questiona sobre um prédio recém erguido na favela Rio das Pedras: “Eu tenho
oito apartamentos naquele prédio, o resto é tudo do Adriano e do Maurício.
Entendeu? Você procura eles e fala com eles, entendeu? Não adianta ficar me
mandando mensagem”. Batista também foi preso na Operação Intocáveis.
Manoel era o síndico dos negócios no ramo imobiliário.
Na denúncia do MP,
Batista é citado como responsável pela supervisão dos canteiros de obras e
pela negociação de imóveis. Numa das escutas telefônicas, ele oferece um
andar inteiro num prédio recém erguido por 60 parcelas de R$ 4 mil. Valor
previamente acertado com o ex-capitão Adriano, ora tratado por “Gordinho”,
ora por “Patrãozão”, apelidos captados nas investigações da rachadinha e
das execuções de Marielle e Anderson.
Trecho de conversa entre Manoel e Adriano.
Era Adriano que
definia preços, condições de pagamentos e, em muitos dos casos, fazia a
cobrança dos valores diretamente aos compradores e inquilinos. Não há na
investigação uma estimativa dos lucros obtidos pela milícia no ramo
imobiliário, mas o preço médio dos apartamentos, com dois quartos, sala,
banheiro e cozinha nas duas favelas gira em torno de R$ 100 mil.
Planilhas
apreendidas durante a operação policial num imóvel usado como sede do
Escritório do Crime, o Moradas do Itanhangá, indicavam retiradas semanais
feitas pelo ex-capitão e também pelo tenente reformado Maurício e pelo o major
Ronald, também amigo de Flávio Bolsonaro. Além de ser o responsável
pela contabilidade do grupo, Ronald também foi homenageado por Flávio
Bolsonaro com uma menção honrosa em 2004. Em várias conversas gravadas pelo
MP, o major aparece combinando de se encontrar com Batista para “bater” as
contas no fim da semana.
Major Ronald mantinha planilhas contábeis, com repasses de dinheiro
para Adriano, plantas de prédios e outros documentos relacionados às
construções ilegais.
‘O MP está preparando uma p... do tamanho de um cometa
para empurrar na gente’
A frase de Queiroz
foi dita em áudios de Whatsapp divulgados pelos jornais O Globo e Folha
de S.Paulo em outubro. Desde então, muito se especulou a que ele se
referia. Investigadores ouvidos pela reportagem acreditam que Queiroz sabia
que o inquérito tinha identificado o uso do dinheiro desviado no esquema de
rachadinha para financiar o boom de construções ilegais na Muzema e em Rio
das Pedras, comunidade onde Fabrício Queiroz se refugiou em dezembro de
2018, como revelam as quebras de sigilos telefônicos e telemáticos.
Na opinião de
envolvidos na investigação da rachadinha, a conclusão do cruzamento de
dados financeiros dos 86 citados no inquérito, dentre eles o atual senador
Flávio Bolsonaro, vai ser capaz de comprovar os crimes, entre eles lavagem
de dinheiro. E, assim, explicar a suspeita evolução patrimonial do
primeiro-filho e, sobretudo, justificar a movimentação do senador para
tentar a todo custo paralisar o trabalho dos promotores.
Item 29 revela que o crime de lavagem de dinheiro está sendo apurado
em procedimento específico no inquérito da rachadinha do então deputado
Flávio Bolsonaro.
Nas redes sociais e
nas poucas entrevistas em que falou sobre o esquema de rachadinha, Flávio
Bolsonaro afirma ser vítima de perseguição da imprensa e critica o
vazamento de informações do processo, que está sob segredo de justiça. O
político também afirma não ter conhecimento sobre o fracionamento de
salários de seus funcionários. Procurado pelo Intercept, o senador não se
manifestou.
O filho 01 chegou a
atribuir a responsabilidade das supostas irregularidades a Queiroz, que
teve identificados 438 transferências e depósitos em suas contas,
totalizando cerca de R$ 7 milhões entre os anos de 2014 e 2017.
Queiroz também fez
depósitos regulares de cheques e em dinheiro em contas do primeiro-filho e
da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que numa das operações recebeu R$ 24
mil. Na ocasião, o presidente disse que o valor era parte de um empréstimo
de R$ 40 mil que teria feito ao ex-assessor parlamentar e amigo. Para os
investigadores, apenas a conclusão do inquérito permitirá o esclarecimento
do fluxo de dinheiro, mas a decisão sobre o prosseguimento da investigação
depende dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio, que suspenderam
os julgamentos devido à pandemia de coronavírus.
Desde o início da
investigação, em outubro de 2018, o trabalho dos promotores foi suspenso
três vezes, atendendo à defesa de Flávio Bolsonaro. Ao todo, os advogados
impetraram nove pedidos no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal de
Justiça do Rio, alegando que as quebras de sigilo bancário e fiscal do
então deputado estadual não poderiam ter sido concedidas por um juiz de
primeira instância. Medo de que alguém descobrisse que nem só de chocolate
é feito o milionário patrimônio do senador que entrou na vida política em
2002 com um Gol 1.0 e um sobrenome influente.
Fonte: TI Brasil
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