Por: Rosana
Pinheiro Machado
Pastores com máscaras e luvas da
Igreja Internacional da Graça de Deus se preparando para o
“drive-thru da fé” no domingo de Páscoa, em São Paulo.
Foto:
Rodrigo Capote/Bloomberg via Getty Images
O
MUNDO EVANGÉLICO precisar
estar no centro do debate público e da epidemia do coronavírus no Brasil. Os
evangélicos relativizam mais a gravidade da covid-19 e aprovam mais o governo
Bolsonaro do que a média da população, conforme uma pesquisa recente do Datafolha.
Esse segmento religioso deve superar o católico nos próximos anos,
segundo estimativas do IBGE.
O maior desafio desse debate
sobre religião e política talvez seja apontar os efeitos perversos causados
pela ganância de alguns pastores sem que isso caia na narrativa generalizante e
preconceituosa que demoniza todo um universo evangélico, que é plural e que tem
suas próprias disputas políticas internas.
Nos últimos dias, pastores como
Edir Macedo e Silas Malafaia têm feito um grande desserviço ao combate da
epidemia, colocando-se contra o isolamento social e temendo o esvaziamento das
igrejas, que é fonte de arrecadação de dízimo e também de formação de coesão
social. Mais do que isso, multiplicam-se memes e vídeos no WhatsApp de pastores charlatões,
dizendo que quem tem fé está imune, que a epidemia é coisa de satã, uma vingança divina.
Também há aqueles que oferecem receitas de cura.
Para além de sua base, Malafaia
e sua trupe da bancada evangélica têm feito lobby com
Bolsonaro, que acena cada vez mais para esse setor, violando constantemente os
dispositivos constitucionais do estado laico. O presidente inclusive decretou
que as igrejas não deveriam ser fechadas, classificando-as como um serviço
essencial.
Bolsonaro se conecta com os
crentes de forma muito potente quando diz, no Programa do Ratinho, que
a igreja às vezes é a única coisa que as pessoas têm. Ele também pediu jejum
nacional para combater o vírus com a fé. Em grupos bolsonaristas mais fanáticos
do WhatsApp, Bolsonaro aparece em memes como salvador não apenas do Brasil, mas
da humanidade. Tudo isso enquanto nega, desafia e deturpa a ciência em
um dos momentos mais crítico da história do país.
A conexão com o crente é
fundamental para Bolsonaro se manter no poder. Enquanto ele conseguir isso, sua
base será fortalecida e, provavelmente, maior. As igrejas evangélicas, neste
momento de crise, se colocam como uma alternativa para as populações mais
vulneráveis, oferecendo tanto conforto emocional quanto ajuda assistencial.
Nos últimos dias, coletivos e
ONGs têm distribuído cestas básicas em bairros periféricos no Brasil todo. Mas
dificilmente chegam perto da operação de guerra,
totalmente espetacularizada por meio de imagens de ajuda humanitária, montada
pela Igreja Universal. Eles marcam presença e se vendem como aqueles que
estariam, de fato, atuando na base social. Quanto maior a crise, mais as
pessoas precisam da Igreja e mais se alinham a Bolsonaro.
Acredita
Por outro lado, como a
pesquisadora Ana Carolina Evangelista, do Instituto
de Estudos da Religião (Iser) e o pastor Fábio Bezerril
pontuaram, é preciso romper com a ideia que as grandes igrejas mercenárias e os
pastores como Silas Malafaia e Edir Macedo representam o mundo evangélico. O
próprio Fábio é, assim como muitos outros,
um religioso de esquerda que tem dito para os crentes – em
cultos pelos celulares e mensagens via WhatsApp – que a ciência é uma
dádiva de Deus e que, portanto, deveria ser seguida.
Com isso, quero chamar atenção
para o fato que existe uma racionalidade muito mais organizada no mundo das
igrejas evangélicas do que o senso comum preconceituoso quer imaginar. Um mundo
para além dos pastores charlatões e do fanatismo que louva Bolsonaro.
Como ressaltou Evangelista, os
números do Datafolha mostram que, no que concerne ao combate ao coronavírus, a
diferença entre evangélicos e a população geral não chega a ser significativa
em vários critérios. Por outro lado, a pesquisadora destaca que a diferença
mais relevante entre os dois grupos é a de apoio a Bolsonaro. Isso vai ao
encontro, segundo ela, a uma tendência recente de bolsonarização da base
popular durante a crise do coronavírus.
Presidente da República, Jair
Bolsonaro durante Celebração de Páscoa por videoconferência.
Fotos: Marcos Corrêa/PR
Aprovação de Bolsonaro cresce
A análise de Evangelista
encontra eco nos dados etnográficos preliminares que eu e Lucia Scalco estamos
levantando em uma periferia de Porto Alegre. Encontramos mais adesão à
Bolsonaro do que decepção.
Preocupadas com a repercussão
do coronavírus entre interlocutores que acompanhamos por mais de uma década,
decidimos retomar alguns pontos de investigação entre nossas redes. Nossas
trocas estão apenas começando e, por isso, nada aqui tem caráter conclusivo.
Tampouco é possível generalizar quantitativamente. Mas começamos a investigar
algumas possíveis tendências e lançar hipóteses no debate público,
especialmente aquelas que podem trazer dados indigestos. Há algo que nos
surpreendeu: uma ambivalência entre a compreensão da importância do isolamento
social e, ao mesmo tempo, o reconhecimento da impossibilidade de parar de
trabalhar. É aí que Bolsonaro passa a ser aprovado.
Tem
crescido a velha polarização entre as figuras do “trabalhador e/ou
empreendedor” e do “vagabundo”.
Esse fato, em grande medida,
pode estar relacionado à mediação das igrejas evangélicas, que têm tido maior
penetração em muitas comunidades e vêm sendo um agente central durante a crise
do coronavírus.
A velha polarização entre
as figuras do “trabalhador e/ou empreendedor” e do “vagabundo” ressurgiu. Temos
percebido, ainda de forma incipiente, aparecer uma disputa entre aqueles que
ganham bolsa família e veem com esperança a possibilidade de mudar de vida com
até R$ 1.200,00 da renda básica emergencial. Esse é um segmento que está
sonhando, fazendo planos e até abandonando a tristeza com o horizonte do
pagamento.
Mas existem muitas pessoas que
não sabem se podem ganhar o benefício, como os pequenos comerciantes, e pensam
que a ajuda financeira reforçará uma “injustiça” entre aqueles que querem trabalhar.
Muitos desse grupo acham que parar de trabalhar é injusto e inviável, mas não
são negacionistas da pandemia. E são as igrejas – algumas delas inclusive
neopentecostais estimuladoras do empreendedorismo – que irão acolher esse
sujeito, conscientizando (ou não) sobre o distanciamento e reforçando a
necessidade trabalhar.
É nesse sentido que Bolsonaro
aparece, até mesmo entre alguns de interlocutores que não votaram nele, como
alguém que está acertando na condução da crise e que se conecta com as demandas
populares. É claro que essa realidade pode mudar completamente quando as mortes
começarem a entrar nos lares desses trabalhadores que nem sequer água tratada
têm.
A crise do
coronavírus
Ao que tudo indica, o cenário
atual pode ser favorável a Bolsonaro e a sua penetração nos grupos populares.
Isso ocorre por meio de uma postura que fala para “o trabalhador brasileiro”
nos pronunciamentos nacionais. Sabemos que isso é falso, porque, na TV fala conforme a (OMS) mas na prática, anda na contra-mão. Não adianta fechar
os olhos e acreditar que China, Itália, França e Estados Unidos estão na normalidade, e isso é apenas uma "gripizinha" porque não é!
As pessoas recorrem a várias
fontes de informação e navegam entre elas. A televisão e os jornais alertam
sobre a gravidade do coronavírus. O meme diz que o vírus é “chinês” e veio para
dominar o mundo. Na TV, o discurso de Bolsonaro relativiza a necessidade
de isolamento social que muitas pessoas consideram ser um extremismo que
não é viável para suas necessidades de sobrevivência. As igrejas, por sua vez,
agem no limite entre a promessa da salvação do vírus satânico e a provisão de
comida e remédios.
Hoje, qualquer medida de
combate ao coronavírus terá que se conectar com a fé e as demandas populares.
Não é razoável tachar como ignorantes os evangélicos desse grupo e desprezar o
setor que mais cresce no Brasil. É uma realidade que se impõem cada vez mais no
país e para a qual não se pode fechar os olhos.
Se a ciência é a arma que usamos para combater o
coronavírus, não é suficiente — ou mesmo eficaz — impô-la de cima para baixo a
um segmento que não consegue aderir totalmente a esse discurso de imediato. Por
isso, nunca foi tão importante disputar social e politicamente o mundo
evangélico. Nunca foi tão importante que cientistas promovam debates e ações
junto a religiosos para criar maior conscientização da população de que o
distanciamento de hoje é a vida de amanhã.
Fonte:
TI Brasil