Imagem ABR Bolsonaro
(centro) criticou as restrições impostas pelos governadores João Doria (esq.) e
Wilson Witzel
O presidente da República, Jair Bolsonaro (sem
partido), iniciou nos últimos dias uma queda de braço com governadores dos
Estados brasileiros.
Afinal,
quem deve ter a última palavra sobre as medidas de isolamento social ou de
"quarentena" que devem ser seguidas pelos brasileiros?
Em
suas últimas falas públicas, Bolsonaro tem defendido uma estratégia chamada por
ele de "isolamento vertical":
só idosos e pessoas com doenças pré-existentes deveriam ficar em casa diante do
avanço do número de infecções pelo vírus Sars-CoV-2.
Coronavírus:
postura de Bolsonaro coloca União e Estados em enfrentamento direto.
Todas
as demais pessoas deveriam ser liberadas para trabalhar normalmente, pediu o
presidente — o que inclui a reabertura dos estabelecimentos comerciais,
fechados desde a semana passada em várias cidades brasileiras.
A
ideia vai na contramão do que defendem a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a
Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), entre outras entidades.
E
contraria diretamente as decisões tomadas por governadores e prefeitos em
diferentes regiões do Brasil nos últimos dias. Vários Estados brasileiros
limitaram o funcionamento do comércio e do transporte público, além de
determinarem o fechamento de instituições de ensino.
Ao
longo de quarta-feira (25), a disputa entre Bolsonaro e governadores em torno
das medidas contra o coronavírus escalou: o presidente discutiu em público com
o governador de São Paulo, João Doria (PSDB) e recebeu uma nota crítica
assinada pelos governadores da região Nordeste.
Foi
alvo de críticas também dos chefes dos Executivos estaduais do Espírito Santo,
do Rio de Janeiro e do Pará.
Na
tarde de quarta, o Ministério da Saúde registrava 2.433 casos confirmados de
infecção pelo novo coronavírus. Ao menos 57 pessoas faleceram no Brasil por
causa da doença.
Especialistas
em direito constitucional consultadas dizem que a Constituição reserva ao
governo federal o direito de legislar sobre algumas questões, entre elas o
transporte interestadual de passageiros e o fechamento de rodovias, portos e
aeroportos.
No
momento, entretanto, os governadores contam com autorização para tomar atitudes
em relação a esses serviços: é o que prevê uma lei sancionada pelo próprio
Bolsonaro ainda no começo de fevereiro, no começo da crise do novo coronavírus,
dizem os especialistas.
Imagem AGENCIA PARÁ Não vamos pedir autorização para
proteger população, diz governador do Pará sobre Bolsonaro e coronavírus
O
assunto também foi discutido no Supremo Tribunal Federal: em decisão liminar
(provisória) na terça-feira (26), o ministro Marco Aurélio Mello decidiu que a
medida provisória (a MP 926 de 2020) editada por Bolsonaro no fim da semana
passada não retirou dos governadores o poder de interromper momentaneamente os
serviços de transporte.
Esta
era a intenção inicial do governo, segundo disse o próprio Planalto na
exposição de motivos da MP.
Fora
isso, os governadores também podem determinar atitudes como o fechamento do
comércio não essencial e o cancelamento de eventos e aulas. Estas seriam
medidas atinentes à saúde pública, cuja competência é dividida entre União,
Estados e municípios — este entendimento foi inclusive reafirmado pelo ministro
Marco Aurélio.
Até
que o plenário do STF se reúna para
decidir o assunto, a decisão em vigor é a do ministro.
Por
fim, no começo da noite, Bolsonaro usou sua conta no Twitter para dizer que
editou um decreto classificando as lotéricas como um serviço essencial, cujo
funcionamento não pode ser interrompido.
Saúde
é responsabilidade de prefeitos, governadores e União
Estefânia
Barboza, que é professora de direito constitucional na Universidade Federal do
Paraná, diz que a Constituição brasileira trata a saúde como um assunto de
competência concorrente entre União, Estados e municípios — isto é, um tema no
qual as três esferas de poder possuem atribuições e devem atuar.
"A
decisão do ministro Marco Aurélio parece indicar que o STF entende que estas medida de combate ao
coronavírus devem ser vistas por esse prisma. Ele parece estar indicando que,
no entendimento dele, este é um tema no qual União, Estados e municípios vão
decidir de forma concorrente", diz.
"Quando
um governador impede a entrada de um ônibus vindo de outro Estado, por exemplo,
no contexto atual, isso não é uma medida relacionada somente a transportes. É
uma medida do campo da saúde também", diz ela.
Numa
situação como esta, diz Barboza, os Estados podem agir para complementar as
determinações da lei federal, mas sem entrar em conflito com ela.
"Nestes
casos, o que a gente tem é uma sobreposição de regimes. A gente têm
competências que são de prefeitos, de governadores e da União, para dispor
sobre políticas de saúde. A Constituição determina que essas políticas sejam
hierarquizadas, mas não exclui a competência de governadores e prefeitos",
diz a professora de direito constitucional Eloisa Machado de Almeida, da FGV
Direito SP.
A
advogada constitucionalista Vera Chemim explica que as competências da União,
dos Estados e dos municípios estão discriminadas nos artigos 21, 22, 23 e 30 da
Constituição — e, normalmente, assuntos como o transporte interestadual de
passageiros e o funcionamento dos aeroportos só podem ser regulados por leis da
União.
"Diante
dessa situação excepcional (do coronavírus), os entes federados acabaram
determinando medidas que aparentemente ferem essa divisão. E no entanto, nesse
momento, essa decisões deles estão amparadas por uma lei sanitária (a lei de
fevereiro), que trata da saúde pública", diz ela. O mesmo ponto foi
ressaltado por Eloisa Machado, da FGV.
Imagem AMANDA PEROBELLI/REUTERS As diferenças diante da
crise foram o estopim para
uma disputa verbal entre Bolsonaro e o governador de São
Paulo, o tucano João Doria (SP), na manhã de quarta
'Não
vamos pedir autorização para quem quer que seja'
As
diferenças diante da crise foram o estopim para uma disputa verbal entre
Bolsonaro e o governador de São Paulo, o tucano João Doria (SP), na manhã de
quarta-feira.
"Inicio
(a fala) na condição de cidadão, de brasileiro e de governador de São Paulo,
lamentando os termos do seu pronunciamento ontem à noite à nação", disse
Doria, durante uma conferência do presidente da República com os governadores
dos Estados da região Sudeste.
"Estamos
aqui, os quatro governadores do Sudeste em respeito ao Brasil e aos
brasileiros, e em respeito ao diálogo e ao entendimento. Mas o senhor que é o
presidente da República tem que dar o exemplo, e tem que ser o mandatário a
dirigir, a comandar e liderar o país e não para dividir", disse o
paulista.
Bolsonaro
irritou-se ao responder Doria, chamando-o de "demagogo" e
"leviano". Ele acusou o político tucano de agir com vistas à disputa
presidencial de 2022 — tanto Bolsonaro quanto Doria já manifestaram o interesse
em disputar a presidência no próximo pleito.
Para
Bolsonaro, Doria se comporta de forma oportunista ao atacá-lo agora, depois de
buscar se associar ao então candidato do PSL nas eleições de 2018.
O
governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), também criticou
Bolsonaro por incentivar as pessoas a saírem de suas casas.
"Temos
seguido a OMS (Organização Mundial de Saúde) e na hora que o presidente opina e
tira o valor da pandemia, causa uma confusão e uma dúvida nas pessoas, podendo
atrapalhar o trabalho dificultando nossa ação. A dúvida e incerteza é a porta
do fracasso", disse o mandatário capixaba.
No
fim da tarde de quarta, João Doria disse que promoveria uma reunião (por
videoconferência) com os governadores dos 26 Estados brasileiros e do Distrito
Federal, para discutir medidas relacionadas ao surto do novo coronavírus.
A
reação, contudo, não se restringiu a adversários do presidente. Aliados de
Bolsonaro também acusaram o chefe do Executivo federal de agir contra os
esforços de contenção do novo coronavírus.
"(Quero)
que a população saiba que as decisões do presidente no que diz respeito à saúde
e coronavírus não alcançam o estado de Goiás. As decisões de Goiás serão
tomadas por mim, pela Organização Mundial de Saúde e pelos técnicos do
Ministério da Saúde", disse o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM) —
acrescentando que rompeu politicamente com Bolsonaro.
"Não
tomamos nenhuma medida que não fosse muito discutida com a comunidade
científica, pesquisadores, médicos e profissionais da saúde", disse o governante
goiano. Médico de formação, Caiado foi um dos primeiros políticos a apoiar
Bolsonaro na disputa presidencial de 2018.
Outro
aliado de Bolsonaro da época da campanha, o governador de Santa Catarina,
Carlos Moisés (PSL), se disse "estarrecido" com a abordagem defendida
pelo presidente.
"Venho
a público informar à população de Santa Catarina que nesta quarta-feira, 25 de
março, iniciamos mais uma quarentena de sete dias por determinação de decreto
deste governador, mais sete dias para ficar em casa (...). É o local mais
seguro", disse ele.
O
governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), disse em entrevista que não
pediria "autorização" de Bolsonaro para tomar as medidas necessárias
para conter o vírus. "Estamos fazendo a nossa parte aqui. Nós não vamos
nos apegar ao calendário de quem quer que seja, muito menos pedir autorização a
quem quer que seja para cumprir com a nossa obrigação que é defender a
população paraense", afirmou.
No
fim da tarde, os governadores dos Estados da região Nordeste também divulgaram
uma nota na qual criticam as ações recentes de Bolsonaro no tema.
No
documento, os nove governadores da região se dizem frustrados com as posições
agressivas de Bolsonaro até aqui, e argumentam que ele deveria "exercer o
seu papel de liderança e coalizão em nome do Brasil"
BBC
Brasil