Boatos têm levado algumas
pessoas a evitar a vacina | Foto: Raquel Portugal/Fiocruz
"Está
confirmada suspeita. O vírus já mutou. A vacina já não protege. Evitar locais
com incidência da doença. E é mais agressivo."
A mensagem
viralizou em grupos de WhatsApp nos últimos dias. Era mais um alerta sobre a
vacina da febre amarela. O link remete a uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) sobre mutações no vírus da doença, mas, apesar da roupagem
científica, o trecho sobre a ineficácia da vacina por esse motivo é falso.
Também não
se fundamentam, segundo a Fiocruz, outros boatos em torno do imunizante que
circulam nas redes sociais, como o de que a vacina contém mercúrio e deve ser
evitada por quem tem alergia a insetos.
Procurados
pela BBC Brasil, a fundação e especialistas buscaram derrubar essas e outras
informações falsas sobre os efeitos da vacinação em massa. Confira:
Mutação
de vírus não necessariamente afeta eficácia de vacinas
No link
que acompanhava o aviso sobre a mutação, via-se uma pesquisa da Fiocruz
mostrando que a ela própria havia identificado mutações na sequência genética
do vírus da febre amarela. Estudiosos falavam em modificações na composição de
proteínas importantes na sua replicação. "Os pesquisadores consideram que
é possível haver uma vantagem seletiva, refletindo-se na capacidade de infecção
e disseminação do vírus", afirma o texto.
Logo em
seguida, porém, uma ressalva: "Novas pesquisas são fundamentais para
determinar se essas modificações no genoma são específicas dos microorganismos
envolvidos no surto atual".
Quanto aos
efeitos dessa descoberta na eficácia da vacina em voga, os especialistas
destacavam no último parágrafo que "o imunizante adotado atualmente
protege contra genótipos diferentes do vírus, incluindo o sul-americano e o
africano". E que "as alterações detectadas no estudo não afetam as
proteínas do envelope do vírus, que são centrais para o funcionamento da
vacina".
'A
verdade é que tudo o que acontece na vida de um indivíduo nos dias seguintes à
vacinação ele tende a relacionar com a vacina`, diz a pediatra Monica Guarnieri
Machado. imagem Reuters
A pesquisa
é real. Versa sobre as mutações e foi divulgada no site da Fiocruz em 17 de
maio de 2017. Essa data, porém, não aparece no suposto alerta divulgado nas redes
sociais. O fato de a informação sobre a vacina surgir apenas no derradeiro
parágrafo provavelmente favoreceu seu uso como fonte. Muitos leitores talvez
tenham compartilhado a informação sem chegar ao final do texto.
Em
nota publicada em seu site , a Fiocruz, fornecedora exclusiva da vacina nos
postos de saúde públicos, reiterou o que já constava do artigo original: as
mutações do vírus encontradas pelos cientistas não afetariam a eficácia do
imunizante.
A chefe do
Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz,
Myrna Bonaldo, explicou com mais detalhes.
"Para
entender os possíveis impactos de mutações no genoma de um ser vivo é
importante entender que, de forma muito simplificada, o genoma é um acervo de
informações que orienta a produção de proteínas", afirmou ela.
Segundo a
especialista, no caso do vírus da febre amarela, diferentes trecho do genoma
orientam a produção das proteínas que constituem a estrutura do vírus e a
"maquinaria de replicação viral" - ou seja, sua capacidade de se
multiplicar.
"O
conjunto de mutações que nosso grupo de pesquisa identificou no vírus da febre
amarela em circulação no país, descrito no estudo publicado em 2017,
localizam-se principalmente em duas proteínas do vírus, que estão envolvidas na
replicação viral. No entanto, não ocorre mudança nas proteínas do envelope do
vírus - que são o principal alvo da resposta de anticorpos neutralizantes
provocada pela vacina."
Não há
uso de mercúrio nem riscos a alérgicos a picadas de insetos
Outro
boato trata da presença de mercúrio utilizado como conservante da vacina e seu
potencial risco para os rins.
Ele se
basearia em reportagem publicada no Jornal da USP de setembro de 2016 que
focava no uso de timerosal (substância que contém mercúrio) como agente
antisséptico em frascos multidoses, a fim de impedir contaminação durante a
manipulação. O texto não mencionava a febre amarela.
A fundação
nega qualquer evidência desse conservante na vacina. "O processo de
produção da vacina da febre amarela da Bio-Manguinhos/Fiocruz não envolve
nenhuma substância que contenha timerosal", afirma a Fiocruz.
Para quem
divulgou que pessoas alérgicas a picadas de insetos deveriam fugir dos postos
de saúde (um vídeo encontrado no YouTube passa sobre o tema), a resposta da
Fiocruz foi mais sucinta e objetiva: "Não há nenhuma relação".
Vacina
de febre amarela tem sido alvo de correntes e boatos nas redes sociais imagem AFP
Muitos
portadores de HIV devem se vacinar
"A
verdade é que tudo o que acontece na vida de um indivíduo nos dias seguintes à
vacinação ele tende a relacionar com a vacina", diz a pediatra Monica Guarnieri
Machado, diretora do Centro de Referência IST/HIV/Hepatites Virais de Diadema
(SP). "No entanto, (a vacina) é o que temos de melhor do ponto de vista
preventivo."
Guarnieri
morou seis anos na África trabalhando com ONGs humanitárias como Fidesco e Médicos
Sem Fronteiras. "A cobertura de qualquer vacina na África é muito baixa,
mas eu me lembro muito bem da tristeza que foi a epidemia de sarampo em
Moçambique, em 2010, que afetou especialmente os jovens", diz.
Ela
aproveita para ressaltar que portadores do vírus HIV com CD4 maior que 350 não
só podem como devem tomar a vacina. CD4 é o indicador usado para medir a
imunidade do paciente.
"Essa
é uma mensagem extremamente importante, que deve ser vinculada, porque há
muitos portadores do HIV que não estão indo aos postos por acreditar que não
podem ser imunizados", afirma.
Descrença
em vacinas: problema aqui e na Europa
Ativistas
antivacina proliferam pelo mundo. O continente europeu vive um surto de sarampo
- são mais de 21 mil casos, centenas de hospitalizados e 35 mortos só em 2017.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) qualifica esse cenário como "uma
tragédia impossível de aceitar".
A
disseminação do vírus seria fruto, em parte, do rechaço à imunização provocado
por um estudo feito há vinte anos de autoria de Andrew Wakefield. O britânico
relacionava a vacina contra sarampo, caxumba e rubéola ao autismo. Seu trabalho
foi carimbado como "fraudulento" e ele está proibido de exercer a
medicina no Reino Unido, mas sua tese ainda reverbera.
A Itália,
um dos países em que ele teria coletado dados, foi o segundo com maior número
de casos de sarampo na Europa em 2017 - cogita-se que a crença na relação da
vacina com o autismo esteja por trás do problema.
Em maio
passado, o governo determinou que crianças de até 6 anos deveriam ser vacinadas
contra doze doenças antes de serem matriculadas nas escolas públicas. Os
responsáveis que não acatarem o determinado podem ser multados em até 2,5 mil
euros.
A medida causou
revolta. Na semana passada, italianos saíram às ruas de Roma para protestar
contra o fascismo, o neorracismo, as reformas trabalhistas... e a vacinação
obrigatória.
Agente
de controle de vetores e menino com máscara se cruzam em São Paulo; imunização
contra febre amarela gera dúvidas e por vezes boatos. imagem Reuters
Mensagens
mais objetivas e bem-humoradas
Para o
antropólogo britânico John Kinsman, professor de Saúde Global na Universidade
de Umea, na Suécia, os governos deveriam investir mais e melhor nas mensagens
passadas à população em campanhas do gênero.
Kinsman
integra projetos envolvendo três epidemias que já foram consideradas
emergências de saúde pública global pela OMS: poliomielite, ebola e zika.
Ele
explica que na Nigéria, por exemplo, a pólio está ressurgindo porque alguns
imãs (autoridades religiosas) consideram a vacina contra a doença uma
"trama ocidental para esterilizar as garotas".
"Nas
áreas sob controle do grupo (extremista) Boko Haram, as taxas de vacinação
contra a poliomielite são muito baixas", afirma.
Considerando
as tamanhas diferenças e resistências culturais, como derrubar boatos e
conquistar adeptos à imunização?
"Objetividade
casada com certa dose de humor talvez seja uma saída", diz o antropólogo.
Para
ilustrar sua fórmula, Kinsman pede que a reportagem abra o site http://howdovaccinescauseautim.com
("como as vacinas causam autismo?"). Uma frase explode na tela:
"They fucking don't" (algo como "elas simplesmente não
causam", mas com um palavrão no meio).
Fonte:
BBC Brasil