Image caption Ministro Dias
Toffoli pediu vista no julgamento que pode restringir o foro privilegiado |
Foto: Carlos Moura/STF
"Diante da adiantada hora, eu tenho um
compromisso médico agora aqui no posto, como avisei à vossa excelência (...) eu
vou pedir vista do processo". Assim o ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) Dias Toffoli anunciou, no plenário da corte, que iria pedir vista no
processo cujo julgamento pode definir a extensão do foro privilegiado a
parlamentares.
Já há maioria para a restrição do privilégio, com
resultado parcial de 8 a 0, mas com o pedido de vista desta quinta-feira, fica
indefinido o prazo para resolução do caso na corte.
A proposta limita o acesso de deputados e senadores
ao Supremo apenas aos casos ocorridos no exercício do mandato e ligados à
função. Os crimes comuns passariam a ser investigados e processados pelas
instâncias inferiores.
Pedidos de vista como o de Toffoli já somaram pouco
mais de 370 no STF desde 2001, segundo dados da própria corte. Destes, 240
ainda não foram devolvidos à pauta pelos ministros.
No julgamento de quinta-feira, Toffolli alegou a
necessidade de sanar dúvidas e conversar com colegas sobre o tema após quase
uma hora de exposição oral. Mas, na opinião de Ivar Hartmann, professor da FGV
Direito Rio e coordenador do projeto Supremo em Números, o que costuma ser
apresentado pelos ministros como uma necessidade de estudo diante de um caso
desafiador é usado, na prática, como um "poder de veto unilateral".
Para Hartmann, o pedido de vista é uma "carta
na manga" dos ministros para interromper um julgamento por motivos
diversos - como a avaliação, individual ou compartilhada, de que o contexto
político ou a composição dos votantes não é favorável.
"[O pedido de vista] Nunca foi previsto na
Constituinte ou pelo legislador. Também não conheço nada do tipo em outros
países. Além disso, um tribunal com funcionamento adequado nunca tem um
processo pautado para a semana ou o mês seguinte, como acontece no Brasil, e é
usado como justificativa pelos ministros para interromper o julgamento para
estudar o processo", diz Hartmann.
Cinco casos
importantes travados por vista
1. Descriminalização do porte de maconha
2.Mudança de nome para transsexuais
3. Doação de sangue por gays
4. Financiamento público de remédios
5. Validade do novo Código Florestal
"Mesmo que haja um acúmulo de milhares ações
esperando julgamento no STF, a pauta também poderia ser antecipada no início do
ano aqui. E ainda que isso não aconteça, cada ministro tem um gabinete com 40
pessoas", sugere o estudioso, para quem acompanhar o relator ou até mesmo
faltar uma sessão podem ser alternativas melhores à interrupção de um
julgamento.
"Pedir vista é o pior dos mundos: envolve um
exercício de poder em casos que não deveriam ser decididos
unilateralmente", completa, caracterizando o discurso "oficial"
da dedicação ao caso como "muito útil".
'Perdidos de
vista'
A crítica ao uso recorrente do mecanismo já veio do
próprio tribunal: em entrevista ao jornal O Globo em 2015, o ministro Marco
Aurélio Mello apontou para o risco dos pedidos de vista se tornarem
"perdidos de vista".
"Pedir vista é ruim, porque se perdem na
memória as sustentações da tribuna e os votos dos outros ministros. Se não
houver conscientização, o pedido de vista vira 'perdido de vista' e vai para as
calendas gregas", afirmou Mello ao jornal. O regimento do STF estabelece
prazo de duas sessões para que os "perdidos de vista" sejam
devolvidos. Como não há qualquer sanção, porém, a prática é não devolver.
E, mesmo que sejam devolvidos, isto não garante que
o processo será logo colocado na pauta de julgamento - decisão que cabe ao
presidente do STF.
Foi Mello também quem, nesta sexta-feira, afirmou
que o pedido de vista do colega Dias Toffoli sobre o foro privilegiado foi
feito para esperar a tramitação de Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
sobre o tema no Congresso.
Em paralelo ao julgamento do STF, está em discussão
na Câmara um projeto ainda mais amplo, que extinguiria a prerrogativa de foro
para praticamente todos aqueles que hoje são beneficiados, entre políticos e
membros do Judiciário.
O privilégio seria mantido apenas para o presidente
da República, seu vice e os presidentes da Câmara, do Senado e do STF
Para Mello, a matéria em debate no Legislativo
estava "madura" e já poderia ter tido julgamento concluído.
Image caption Pedidos de vista no
STF já somaram pouco mais de 370, desde 2001 | Foto: Nelson Jr/STF
Na véspera da sessão no STF, informações de
bastidores e especulações já indicavam que os ministros do Supremo deixariam
para os parlamentares a decisão sobre o foro.
Agora, com a interrupção do caso no STF, é possível
que o Congresso tenha tempo para concluir a votação sobre o foro privilegiado.
Segundo o relator do projeto na Câmara, Efraim
Filho (DEM-PB), o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ) está disposto a
levar o tema adiante. "Minha conversa com o Rodrigo (Maia) foi muito
rápida. Ele acompanhou o resultado do foro, da unanimidade (na CCJ da Casa).
Ele sabe que é uma pauta positiva para o país e para a Câmara dos
Deputados", disse Efraim à BBC Brasil.
"A minha expectativa é de que a instalação da comissão
especial possa ocorrer ainda agora em 2017 para que dê tempo, para que se
aproveite inclusive o recesso para preparar um texto (…) que vá ao plenário
ainda no 1º semestre", completa o deputado.
Quem mais
pede vista?
Na soma de pedidos de vista feitos no plenário
desde 2011, tanto na primeira como na segunda turma do STF , é Toffoli quem
lidera dentre os ministros atuais, com 59 pedidos.
Em seguida, vêm: Alexandre de Moraes (56); Gilmar
Mendes (45); Luís Roberto Barroso (40); Cármen Lúcia (25); Luiz Fux (21). No
final da lista estão Rosa Weber (15); Edson Fachin (10); Marco Aurélio Mello
(8) e Ricardo Lewandowski (6). Celso de Mello não registra nenhum pedido de
vista.
A reportagem calculou também a relação entre os
pedidos de vista feitos e os devolvidos (não necessariamente no prazo de duas
sessões). Só dois ministros devolveram todos os seus pedidos: Marco Aurélio
Mello e Edson Fachin. Eles são seguidos por: Cármen Lúcia (72% devolvidos);
Rosa Weber (66%); Toffoli (58%); Ricardo Lewandowski (50%); Alexandre de Moraes
(32%); Gilmar Mendes (24%); Luiz Fux (19%); e Luís Roberto Barroso (10%).
Dentre os pedidos "trancados" eternamente
por pedidos de vista, há um acervo de 56 processos envolvendo a demarcação de
terras indígenas em Roraima. As ações foram relatadas pelo ministro Marco
Aurélio, e o ex-ministro Ayres Britto pediu vista de todos os casos no mesmo
dia, 3 de junho de 2009. Hoje, os processos dos quais Ayres Britto pediu vista
são de responsabilidade de Luís Roberto Barroso, que o sucedeu na cadeira.
Outro caso emblemático é a ação que contestava o
financiamento empresarial de campanhas eleitorais - doações essas que, por
decisão da corte em 2015, foram proibidas. Mas, até ali, a ação foi
interrompida duas vezes por pedidos de vista. Na última, o ministro Gilmar
Mendes pediu vista quando já havia maioria para definir a inconstitucionalidade
das doações e demorou um ano e cinco meses para devolvê-la à pauta.
Cinco casos
importantes
A BBC Brasil relembra cinco casos emblemáticos de
julgamentos interrompidos por pedidos de vista - em que tanto a demora quanto
um eventual julgamento significam impactos importantes em suas respectivas
áreas.
1. Descriminalização do porte de maconha
O caso chegou ao STF em 2011, e até agora só três
ministros votaram. A origem é um recurso relativo ao caso de Francisco Benedito
de Souza, hoje com 57 anos. Ele foi pego com 3 gramas de maconha em uma cela no
Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Paulo.
O primeiro a votar foi o relator do caso, Gilmar
Mendes. Ele defendeu a descriminalização de todas as drogas, não só a maconha,
em agosto de 2015.
Além de Gilmar, só votaram até agora os ministros
Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Os dois últimos foram favoráveis à
descriminalização apenas da maconha.
Image caption Origem do caso
parado no STF é o recurso de um homem pego com 3 gramas de maconha em uma cela
em São Paulo | Foto: AFP
O último pedido de vista foi de Teori Zavascki, que
interrompeu o julgamento em setembro de 2015. Agora, cabe ao ministro Alexandre
de Moraes (que herdou a cadeira de Zavascki) devolver o processo à pauta.
O STF reconheceu que o caso tem "repercussão
geral". Isto é, criará regra para todos os processos similares. Se o
processo for vitorioso, a posse de maconha para uso próprio não será mais
considerada crime, como ocorre hoje, embora a ofensa não seja mais punida com
cadeia.
"A criminalização é inconstitucional. A falta
de celeridade dessa decisão causa sofrimento para milhares de pessoas.
Inclusive famílias que usam maconha de forma terapêutica", diz o cientista
político Gabriel Santos Elias, coordenador da Plataforma Brasileira de Política
de Drogas.
2. Mudança de nome para transexuais
Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e um
recurso contra a decisão da Justiça do Rio Grande do Sul serão julgados juntos.
Se a maioria dos ministros concordar, os transexuais poderão alterar o próprio
nome no registro civil (RG), mesmo sem realizar a cirurgia de
transgenitalização (mudança de sexo). A ADI foi proposta em 2009, e o recurso é
de 2012.
O caso começou a ser julgado pelo STF em abril
deste ano, mas apenas o relator, Dias Toffoli, falou.
A discussão voltou ao plenário na última quarta-feira.
Além de Toffoli, foram favoráveis à ação os ministros Alexandre de Morais,
Edson Fachin, Roberto Barroso e Rosa Weber.
O ministro Marco Aurélio interrompeu o julgamento
com um pedido de vista, já que não havia quórum para concluir a votação.
3. Doação de sangue por gays
É inconstitucional impedir homens homossexuais de
doarem sangue? É isso que o STF terá de decidir. A ação foi proposta pelo PSB,
em junho passado.
A ação questiona normas do
Ministério da Saúde que impede pessoas que tiveram relações homossexuais nos últimos 12 meses de doar sangue. Ou seja: proíbe, na prática, que
estas pessoas doem.
O assunto chegou ao plenário, mas foi alvo de um
pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, em 26 de outubro.
4. Financiamento público de remédios
De um lado, a urgência de vida de pacientes com
doenças raras por remédios caros e muitas vezes novos - por isso, ainda não
avaliados e autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Do outro, os altos e imprevisíveis custos que recaem sobre os estados e a União
diante de decisões judiciais que os obrigam a fornecer medicamentos não
avalizados pelas autoridades.
O delicado equilíbrio sobre a obrigatoriedade ou
não do Estado de fornecer tratamentos não previstos no Sistema Único de Saúde
(SUS) e na Anvisa entrou na pauta do plenário em 2016.
Mas foi interrompido por dois pedidos de vista. Já
se vai um ano de julgamento parado.
Segundo
afirmou em setembro à BBC Brasil, Sérgio Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose
(ABRAM), ao mesmo tempo em que a decisão final do STF pode representar uma
"eugenia" caso os estados sejam desobrigados a fornecer tais
medicamentos, a demora do julgamento também tem sido prejudicial.
Isto porque as instâncias inferiores acabam
esperando pela definição do supremo. Segundo dados coletados pelo Tribunal de
Contas da União (TCU), há pelo menos 22,9 mil processos paralisados à espera da
decisão no STF.
Image caption Manifestantes
protestam em frente ao STF em 2016; expectativa em torno de julgamento na corte
é alta
5. Validade do novo Código Florestal
Demorou quatro anos para que cinco ações que
questionam o novo Código Florestal - aprovado no Congresso e sancionado pela
presidência em 2012 - começassem a ser julgadas no plenário do STF.
No início deste mês, porém, a deliberação foi
interrompida por um pedido de vista pela presidente do Supremo, a ministra
Cármen Lucia.
O relator da matéria, Luiz Fux, votou pela inconstitucionalidade
de diversos artigos do código - entre eles aquele que é talvez o mais polêmico,
conhecido como "anistia" àqueles que desmataram em desacordo com a
legislação vigente até 2008, condicionada a algumas reparações.
Tanto ambientalistas quanto representantes do setor
rural apontam que a demora no julgamento tem levado insegurança jurídica ao
setor.
Fonte:
BBC Brasil