Grandes empresas brasileiras nasceram tendo
relações escusas com governos brasileiros, especialmente durante a ditadura
militar
Muitas das grandes empreiteiras se beneficiaram de
relações especiais com o Estado desde seu surgimento entre as décadas de 30 e
50, mas o pagamento de propinas se consolidou durante a ditadura, afirma o
historiador Pedro Henrique Campos.
Campos diz que não se surpreendeu "nem um
pouco" com os detalhes da relação escusa entre empreiteiras e governantes
revelada nas delações da Operação Lava Jato: "Não só sabia que existia,
mas acho que era abertamente conhecido".
Ele pesquisou a história dessas empresas, e em especial
seus laços com a ditadura militar (1964-1985), em sua tese de doutorado pela
UFF, que deu origem ao livro Estranhas Catedrais.
Quando a Camargo Correa nasceu, por exemplo, em 1939,
nota o pesquisador, um dos seus fundadores era cunhado de Adhemar de Barros,
então governador-interventor de São Paulo que ficou historicamente atrelado ao
bordão "rouba, mas faz".
Já a Odebrecht nasceu na Bahia em 1944, mas é a forte
relação que ela constrói com a Petrobras, desde a fundação da estatal em 1953,
que vai pavimentar o crescimento da empresa no país - é a empreiteira que mais
cresceu durante a ditadura, segundo Campos.
"Na trajetória antes, durante e depois da
ditadura, e até na ramificação da Odebrecht (para outros setores da economia,
como o petroquímico, com a Braskem) existe a pauta dessa relação com a
Petrobras", nota o pesquisador, atualmente professor do Departamento de
História e Relações Internacionais da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro).
Apesar de reconhecer o ineditismo da Lava Jato ao
aprofundar as investigações sobre essas relações escusas, Campos manifesta
ceticismo com os efeitos da operação na redução da corrupção envolvendo
empreiteiras.
Confira
abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC
Brasil: As recentes revelações da delação de Cláudio Melo
Filho, ex-diretor de Relações Institucionais da Odebrecht, sobre a troca de
favores e propina entre a empresa e políticos te surpreenderam ou confirmaram o
que você já tinha observado na sua pesquisa?
Pedro
Henrique Campos: Não me surpreende nem um pouco, pelo
contrário. Essas delações estão desnudando um processo que, não só eu sabia que
existia, mas acho que era abertamente conhecido. Só que agora estão sendo
revelados os detalhes.
Na minha pesquisa eu me detive sobre o período da
ditadura. Por mais que existissem práticas ilegais, de corrupção naquele
período, era diferente. Era um sistema menos complexo, não havia um conjunto de
instituições públicas funcionando no país, e a atenção dos empreiteiros estava
muito mais voltada para o Poder Executivo.
O Congresso, os partidos e a sociedade civil naquela
época não tinham muito poder. Então, a relação era diretamente com os
militares, ministros, presidentes de estatais.
Enquanto hoje, eles buscam acessar o Poder Legislativo,
os partidos, os parlamentares, para conseguir projetos de lei, emendas
parlamentares, aprovação de medidas provisórias, para ter acesso às diretorias
de estatais (muitas vezes cargos nomeados pelo presidente, mas seguindo
indicações de partidos e parlamentares).
Na minha pesquisa, eu vi que na década de 80, o
movimento de passar as ações do Executivo para o Legislativo não foi feito de
maneira arbitrária. As empresas planejam esse deslocamento das atividades.
Eu cheguei a ler documentos internos do sindicato dos
empreiteiros, o Sinicon, em que eles falam isso, "temos que mudar nossas
ações, parar de falar com os militares, com os ministros, presidentes e
diretores de estatais, para falar mais com parlamentares, com os partidos, com
o Congresso e com a imprensa".
Agora, a prática de pagamento de propinas, é algo
anterior à ditadura e se consolida naquele período. Só que não aparecia tanto
porque os mecanismos de investigação que temos hoje não existiam ou estavam
amordaçados.
BBC
Brasil: Pelo que você pesquisou, seria correto dizer que essas
empreiteiras investigadas na Lava Jato sempre foram corruptas? Seria inerente
ao setor?
Campos: A maior parte das empreiteiras grandes hoje foi
formada entre as décadas de 30 e 50, quando a industrialização criou toda uma
demanda por infraestrutura, com rodovias, hidrelétricas. Elas vão nascer
dedicadas a esse tipo de obras.
Aí tem uma particularidade do capitalismo brasileiro
que é uma centralidade muito evidente do Estado no processo de desenvolvimento
de acumulação de capital. Essas empresas, seus dirigentes, seus donos, em geral
partem de uma relação prévia com o aparelho de Estado.
Vou citar dois casos. A Mendes Júnior foi fundada em 1953 por um ex-funcionário da Estrada
de Ferro Central do Brasil e da Secretaria de Viação de Minas Gerais, que era o
José Mendes Júnior. Ele começa a ver que pode ganhar muito dinheiro do outro
lado do balcão, porque tem um mundo a se fazer de rodovias no início da década
de 50. A Mendes Júnior já foi a
maior empreiteira brasileira.
A Camargo Corrêa
é fundada em São Paulo por dois grandes sócios, o Sebastião Camargo e o Sylvio
Corrêa, que era cunhado do Adhemar de Barros, em 1939. E o Adhemar era
interventor (nomeado por Getúlio Vargas para governar o Estado) de São Paulo.
Então essa relação política da empreiteira é decisiva para ela obter desde o
princípio contratos, relação de obras.
Eu, particularmente, acho que o termo corrupção é muito
abrangente, já que são várias práticas que entram sob esse guarda-chuva da
corrupção. Mas está claro que esses empresários dispõem de um poder político
muito expressivo, com práticas ilegais, no sentido de pautar as políticas
publicas.
Image
copyright Arquivo pessoal Image caption 'Delações estão desnudando processo
que, não só eu sabia que existia, mas acho que era abertamente conhecido',
afirma Campos
BBC Brasil: Segundo sua pesquisa, a Odebrecht foi a empresa
que mais cresceu na ditadura. Pode falar um pouco do histórico da empresa e
como ela se adapta na transição para a democracia?
Campos: Sua trajetória é muito particular. Ela nasceu
na Bahia, em 1944, fundada pelo Noberto Odebrecht, e originalmente tinha
atuação muito local.
Com a Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste, criada em 1959), cresce, mas ainda fica restrita à região nordestina.
Consegue obras contra a seca, a hidrelétrica do rio São Francisco, e de
agências públicas federais que demandam investimentos no Nordeste, sendo a
principal delas a Petrobras.
A Petrobras
é uma empresa fundada em 1953 no Rio, porém as atenções da empresa
originalmente estão muito concentradas no Nordeste, particularmente na Bahia. E
Juracy Magalhães, primeiro presidente da estatal, era um militar baiano (na
verdade radicado na Bahia, ele é nascido no Ceará), com toda uma associação com
empresários locais, que são desde então muito presentes na dinâmica interna da
Petrobras.
A Odebrecht,
na sua própria memória, se gaba de ter contratos com a Petrobras desde os anos
1950, como gasodutos e pequenas obras no Nordeste.
Na explosão de obras que a gente teve antes da
ditadura, no governo JK (Juscelino Kubitschek, presidente de 1956 a 1961), com
as obras de Brasília e as rodovias do plano de metas, a Odebrecht não fez nada disso. Ela não tem nenhuma relação com esses
grandes empreendimentos, que eram mais restritos naquele momento a empreiteiras
mineiras, paulistas e cariocas.
A Odebrecht
vai crescendo então consoante à própria expansão da Petrobras. Na trajetória
antes, durante e depois da ditadura, e até na ramificação da Odebrecht (para
outros setores da economia) existe a pauta dessa relação com a Petrobras.
BBC
Brasil: Como no caso da Braskem (empresa controlada pela
Odebrecht em que a Petrobras tem participação de 36% das ações)?
Campos:
Isso, não é a toa que o principal eixo de diversificação das ações do grupo
Odebrecht sejam no âmbito da petroquímica. A Braskem (criada em 2002 a partir
da fusão de outras empresas do grupo Odebrecht) tem tudo a ver com a parceria
antiga e profunda que a Odebrecht tem na Petrobras mesmo.
O principal produto que a Braskem consome é o nafta
(derivado de petróleo utilizado como matéria-prima para vários produtos como
eteno, propeno, benzeno e gás doméstico) da Petrobras. Então, tem todo um jogo
em torno do preço do nafta que a Petrobras vai praticar e é decisivo para a
lucratividade da Braskem. E a Odebrecht confia no poder que ela tem dentro da
estatal.
Inclusive a Braskem hoje é muito maior que a
construtora Odebrecht. Mas antes
disso é emblemático que a primeira obra principal da empresa fora do Nordeste
seja o edifício sede da Petrobras no Rio de Janeiro.
No início dos anos 1970, a Camargo Corrêa é a maior empreiteira da ditadura, e a Odebrecht não consta nem entre as dez
primeiras nacionais. Aí, tem duas obras que mudam radicalmente o perfil e o
tamanho da Odebrecht, o Aeroporto Internacional do Galeão e a usina nuclear de
Angra dos Reis. São obras que exigem grau de confiança dos militares que outras
empreiteiras não dispõem.
BBC
Brasil: Mas por que ela ganha esses dois contratos e não outra
empreiteira?
Campos:
Eu não tenho detalhes, documentos para comprovar isso. Mas a minha hipótese é
que a Odebrecht ganha as obras justamente por sua inserção na Petrobras e pelo
fato da Petrobras ser uma empresa controlada por uma direção em boa medida
militar, antes e durante a ditadura.
O presidente da
Petrobras no período Médici (general que presidiu o Brasil de 1969 a 1974)
era o Ernesto Geisel (general que após presidir a estatal sucedeu Médici no
comando do país, de 1974 a 1979).
Geisel é uma figura que detém poder político na
ditadura muito forte, e parece ter uma relação de confiança com a Odebrecht
muito intensa. Ele é um dos que vão sinalizar pela indicação da empreiteira
para fazer essas duas obras.
São obras de segurança nacional. A ditadura tinha o
projeto do Brasil potência com controle da arma nuclear. E o aeroporto
internacional do Rio seria o maior do Brasil, para receber aviões militares e
civis. Não é qualquer empresa que eles iam deixar construir. A Camargo Corrêa, por exemplo, tinha
conexões internacionais. Isso gerava uma aversão.
A Odebrecht
tradicionalmente tem um discurso nacionalista que obviamente é muito instrumentalizado.
Não necessariamente ela tem aversão ao capital estrangeiro, mas tem esse
discurso, lastreado um pouco nessa relação com os militares.
Image
copyright Reuters Image caption Odebrecht tinha contratos da Petrobras desde os
anos 1950 e cresceu juntamente com a expansão da estatal
BBC
Brasil: Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em 2014,
você manifestou ceticismo com a Lava Jato. Mudou sua percepção? Está mais
otimista?
Campos:
Inicialmente achei que era mais um escândalo envolvendo empreiteiras, como
inúmeros que tiveram antes. Eu realmente mordi minha língua e ela foi muito
mais longe do que eu imaginava. Eles primeiro prenderam executivos, o que já
era impressionante, mas depois prenderam os proprietários das empresas, algo
supreendente.
Por outro lado, eu não diria que estou otimista. Pelo
contrário, eu estou mais pessimista ainda. Primeiro, que a impressão que tenho
é que a Lava Jato começa interessante, desmonta um esquema envolvendo
empreiteiras e Estado, mas ela parece ser usada com certas finalidades
políticas. Não é só isso a operação, mas os desdobramentos dela parecem ter
algum grau de instrumentalização política.
Segundo, não parece que os mecanismos institucionais
que permitem essas práticas estão sendo atacados. Ninguém está falando de rever
leis de licitações. Ninguém está falando de rever o sistema de obras públicas
no país de modo que as obras sejam mais sérias, mais baratas, menos corruptas,
de maior qualidade.
A gente tem sistemas no exterior em que seguradoras
fiscalizam se a obra está sendo feita no prazo, com qualidade, sem desvio de
recurso e feita com o preço justo. Eu não vejo essa discussão.
Não vejo discussão sobre como funcionam as emendas
parlamentares.
BBC
Brasil: Algo que aumente a transparência do lobby?
Campos:
Sim, a questão do lobby também, que é uma prática institucionalizada nos
Estados Unidos e aqui não.
E por outro lado, os efeitos da Lava Jato, são danosos
em certa medida. Será que uma punição rigorosa vai mudar a forma como ocorre (a
corrupção), sem mudança legal, da estrutura do processo.
Aí vão quebrar as empreiteiras do país e vão vir
empresas de fora. Essas empresas estrangeiras são menos corruptas? Eu tenho
dúvidas se é uma questão moral das empresas. São empresas capitalistas que
buscam lucro e vão usar de artifícios diversos para isso.
O histórico que a gente tem é que as estrangeiras são
tão corruptas quanto. A gente tem a SBN (empresa holandesa que aluga
navios-plataforma) com a Petrobras, a gente tem o cartel das empresas de metrô
e trem em São Paulo, com a Alston, francesa, e a Siemens, alemã.
A diferença é que elas vão mandar lucros para fora, vão
contratar engenheiros estrangeiros, trazer mais equipamentos, material, de
fora. Eu vejo na verdade com muito receio e inquietação os desdobramentos da
Lava Jato.
Fonte:
BBC Brasil