Quatro
maneiras de usar a vitória de Rafaela Silva para confirmar o que você já pensa
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caption Rafaela Silva celebra o ouro na categoria de 57 kg no judô na Olimpíada
do Rio; vitória narrada por diferentes ângulos, a depender do gosto do autor
A trajetória épica da judoca Rafaela Silva, das
favelas do Rio de Janeiro à consagração olímpica em sua cidade natal, forneceu
ao Brasil um cardápio de interpretações, para todo tipo de gosto político e
ideológico.
A negra humilde que sofreu e venceu o racismo. A
sargento que provou o valor da disciplina militar. A beneficiária de apoio
estatal que atesta o poder dos programas sociais. A mulher obstinada que não
precisou do feminismo ou de cotas em seu caminho de superação individual.
Nas últimas 24 horas, todas essas Rafaelas povoaram
timelines e reportagens no Brasil e no exterior.
O fenômeno chamou a atenção do cientista político e
editor Cesar Benjamim, que o descreveu numa publicação no Facebook:
"Um amigo posta que ela venceu o racismo
brasileiro. Outro destaca que ela integra as Forças Armadas, a reserva moral da
nação. Um terceiro lembra que ela é da Cidade de Deus, uma região do Rio de
Janeiro que os coxinhas não frequentam. Vem mais um e ficamos sabendo que ela
não precisou de cotas", escreveu.
Para Benjamim, todas essas pessoas se valeram da
conquista da judoca para "reafirmar ideias gerais, preconcebidas".
"A vitória de Rafaela reafirma tudo o que cada
um já pensava sobre o mundo. Fortalecem-se pontos de vista contraditórios, até
mesmo antagônicos, que nada têm a ver com uma simples vitória numa competição
esportiva", concluiu.
Viés de confirmação
O menu variado de interpretações parece remeter a
um ingrediente conhecido da psicologia humana: o viés de confirmação. Grosso
modo, trata-se da tendência que temos de, uma vez adotada uma convicção ou
crença, buscar apenas exemplos que a confirmem.
"Se você está pensando em comprar um novo
carro específico, de repente você verá esse carro por todos os lados. Se você
acabou de terminar um relacionamento longo, toda música que escutar parecerá
falar de amor. O viés de confirmação é ver o mundo através de um filtro",
escreveu o americano David McCraney no livro You Are Not So Smart (Você
não é tão esperto, em tradução livre), uma compilação sobre pensamento
irracional e autoilusão.
Ou seja, segundo a teoria que explica essa
tendência, costumamos pensar que nossas opiniões são resultado de anos de
análise racional e objetiva, mas muitas vezes elas apenas refletem anos de
atenção a informações que já confirmavam o que acreditamos, enquanto ignoramos
fatos que desafiam nossas noções preconcebidas.
Uma história de superação com forte componente
social, em um país polarizado pela disputa política, forneceu um prato cheio de
interpretações - e parece ter acionado o viés de confirmação em cada um de nós.
Abaixo, alguns exemplos de como a - merecida -
medalha olímpica de Rafaela Silva parece ter confirmado o que os estudos
psicológicos dizem: queremos estar certos sobre o mundo, então buscamos
informações que confirmem nossas crenças, fugindo de evidências e opiniões
discordantes.
1. Vitória sobre o racismo
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caption Vitória sobre racismo: relatos descreveram sucesso olímpíco como êxito
em 'guerra velada' no Brasil
Em 2012, Rafaela Silva foi desclassificada na Olimpíada
de Londres ao aplicar um golpe irregular. Após a derrota, acabou sendo vítima
de insultos racistas nas redes sociais, como relatou em entrevista ao site
GloboEsporte.com:
"Tinha (tuíte dizendo) que lugar de macaco era
na jaula, e não nas Olimpíadas, que eu era vergonha para a minha família. Eu
estava indignada, só queria minha família. Achei que ia ter incentivo, mas
estava todo mundo me criticando", disse Rafaela.
A narrativa da vitória da judoca como exemplo de
superação do racismo predominou na mídia e foi recorrente em relatos de
usuários de redes sociais.
2. Militares como reserva moral
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caption Exaltação do status militar da judoca deu o tom em publicações e
postagens mais à direita no espectro político
Outros relatos atribuíram significado diferente ao
sucesso de Rafaela, que é militar da Marinha e uma das 145 atletas militares
que integram a delegação brasileira nos Jogos do Rio.
"Parabéns, sargento Rafaela, e parabéns para o
Exército brasileiro por fornecer atletas de alto nível, mesmo sem dinheirto da
Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Petrobras", escreveu um usuário
do Facebook.
"São os militares salvando nossa pele, de
novo", foi outro comentário nesse sentido identificado pela reportagem. Postagens
ganharam tração após publicação em páginas de inclinação política à direita.
Rafaela ingressou nas Forças Armadas por meio do
programa de incorporação de atletas de alto rendimento, uma parceria entre os
ministérios da Defesa e do Esporte.
O alistamento é voluntário e a seleção considera
resultados dos atletas em competições nacionais e internacionais. Medalhas
viram pontos nos concursos para preenchimento das vagas. Uma vez selecionados,
os atletas dispõem dos benefícios da carreira militar, como 13º salário, plano
de saúde, férias e instalações para treinamento.
No Rio, Rafaela preferiu não bater continência ao
receber o ouro, prática que chamou a atenção no Pan-Americano de Toronto, em
2015. "Para não correr o risco de perder a medalha, mantive a mão no
lugar", disse.
3. Poder dos programas sociais
Image copyright Repodução Image caption Apoio a
Dilma em 2014 e benefício estatal: relatos ligaram sucesso a políticas da
gestão Dilma
Atleta da ONG Instituto Reação, iniciativa do
ex-judoca e medalhista olímpico Flávio Canto que usa o judô como instrumento de
inclusão social, Rafaela Silva também recebe a chamada Bolsa Pódio, do
Ministério do Esporte.
Dos 14 judocas convocados para a Olimpíada (sete no
masculino e sete no feminino), 13 contam com o benefício.
A bolsa foi instituída por lei em 2011, ainda na
gestão da presidente afastada Dilma Rousseff. O objetivo era apoiar atletas com
chances de disputar finais e medalhas olímpicas e paralímpicas, e as bolsas
variam entre R$ 5 mil e R$ 15 mil.
Na campanha presidencial de 2014, Rafaela chegou a
gravar um vídeo manifestando apoio a Dilma e citando o apoio estatal.
"Ela incentivou bastante o apoio a nossos
atletas. A gente tem o bolsa atleta e para mim e meus companheiros ela fez
muita diferença para a gente buscar nossos sonhos", disse na ocasião.
Em um país polarizado e em meio a uma disputa de
poder no plano federal, esse aspecto da história da atleta logo ensejou munição
para o embate político, sobretudo para apoiadores do governo afastado.
"Projeto social e bolsa atleta. A vitória da
Rafaela Silva é a derrota do discurso de direita", escreveu um perfil no
Twitter.
3. Superação individual
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Produtividade e superação individual, pelos
próprios méritos, são valores comumente associados ao pensamento liberal, mais
à direita.
Esses aspectos se destacaram em alguns relatos
sobre a participação da judoca brasileira. Segundo essas interpretações,
Rafaela "nunca se vitimizou" diante do preconceito, "seguiu em
frente" e venceu pelos próprios méritos.
Alguns desses registros foram acompanhados por
afirmações dando conta que a atleta "nunca precisou do feminismo".
O menu variado de versões sobre a caminhada da
primeira medalhista brasileira na Olimpíada no Rio chamou a atenção de um
internauta, que sugeriu uma explicação para o fenômeno:
"O bom de a Rafaela Silva ter origem pobre,
ser negra e militar é que dá para ela agradar esquerda e direita".
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caption Aspectos diferentes da história de Rafaela Silva ensejaram
interpretações distintas pelo espectro político, apontou um internauta
Para o cientista político Cesar Benjamin, que
chamou a atenção para a disparidade de relatos, os "fatos não carregam em
si sua própria interpretação".
"Fatos são apenas fatos. As interpretações sao
criações das nossas cabeças. Nós somos responsáveis por elas. Quando elas
passam a vampirizar os fatos, impedindo que eles existam livremente, o
pensamento está doente", criticou em sua publicação no Facebook.
Tudo isso, claro, não tira o mérito da trajetória
de Rafaela, mas todos esses relatos talvez falem mais sobre nós e a sociedade
brasileira atual do que sobre a vitoriosa judoca da Cidade de Deus.
Fonte: BBC
Brasil