Os
brasileiros que foram separados à força de pais com lepra e lutam por reparação
Image copyright Acervo: Jaime
Prado Image caption Bebês retirados pelo Estado de pais, que eram pacientes de
hanseníase, e eram enviados a educandários
Helena Bueno Gomes nasceu em 1961 em uma cadeia da
região de Pirapitingui, em Itu, no interior de São Paulo. No dia seguinte, foi
separada de sua mãe, que nunca conheceu.
Quatro décadas depois, descobriu que seus pais eram
pacientes de hanseníase e internos da colônia do Hospital Dr. Francisco Ribeiro
Arantes, um dos maiores leprosários brasileiros do século 20.
Também conhecidos como asilos e sanatórios, os
leprosários eram grandes espaços onde ficavam as pessoas com a doença. O
objetivo era isolar totalmente os pacientes da sociedade. O preconceito contra
a lepra é histórico - até a década de 1940, o tratamento era desconhecido.
"Muitos anos depois, percebi que nasci em uma
cadeia dentro do Hospital, para onde eram mandados os pacientes que não
obedeciam às ordens das autoridades na colônia", explica Helena.
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caption Helena Bueno Gomes descobriu, muitos anos após ter sido separada dos
pais, que havia nascido em em uma cadeia localizada em Itu, no interior de São
Paulo
A regulamentação dos leprosários aconteceu na
década de 1920, com a criação da Inspetoria de Profilaxia e Combate à Lepra e
Doenças Venéreas. Estes espaços passaram a ser organizados como uma cidade, com
escolas, praças, dormitórios, refeitórios e até delegacias, prisões e
cemitérios. Chegaram a existir cerca de 40 leprosários em todo o Brasil.
Em 1949, o isolamento forçado dos hansenianos em
leprosários virou lei federal, que vigorou até 1986.
A legislação permitia separar os filhos dos
pacientes que engravidassem dentro das colônias. Ainda bebês, eram enviados em
cestos à educandários e preventórios, espécie de creches de filhos considerados
órfãos, mesmo tendo pais vivos.
Helena e sua irmã, a única parente que conhece,
foram enviadas, no dia do nascimento, a diferentes educandários em São Paulo e,
depois, a Carapicuíba, cidade da região metropolitava da capital paulista.
Image copyright Acervo: Jaime
Prado Image caption Foto de 1968 mostra a entrada do antigo leprosário de
Bauru, no interior de SP
"Havia um homem que se dizia meu tutor. Ele
explicou que meus pais não poderiam cuidar de mim porque estavam doentes",
conta.
Segundo ela, esse mesmo homem passou a deixá-la em
casas de diferentes famílias, onde tinha de trabalhar como empregada doméstica
e com frequência sofria violência e discriminação.
Com 13 anos, Helena resolveu fugir da casa em que
vivia. "Fiz amizade com a vizinha, de maneira escondida. Essa mulher me
disse que, se um dia eu quisesse fugir, ela me daria abrigo. Então eu liguei
para ela e disse 'eu não aguento mais'", lembra.
Image copyright Acervo: Jaime
Prado Image caption Em visita histórica, Getúlio Vargas conheceu o leprosário
de Bauru em 1938
No dia combinado, Helena acordou antes da família
e, carregando a certidão de nascimento e um ursinho de pelúcia, pulou o portão.
"O ursinho ficou para trás, enroscado no
portão. Mas corri o máximo que pude e consegui chegar na casa da mulher."
Até passou alguns anos fugindo do Estado.
"Ligavam para essa mulher e faziam ameaças. Quase todo dia tinha um carro
parado na rua, observando a casa. Eu nunca podia sair. Quando completei 18
anos, foi o dia mais feliz da minha vida. Eu estava livre."
Separação entre pais e filhos
Maior de idade, Helena começou a pesquisar o seu
passado. Em 2011, conheceu o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas
pela Hanseníase, o Morhan, e se deu conta que fazia parte dos 40 mil bebês que
foram separados de pacientes, segundo dados estimados pela Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República.
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caption Helena Bueno em educandário de Carapicuíba, em São Paulo
No caso de Eloísio Ermelindo da Silva, de 48 anos,
filho de um casal interno da colônia de Pirapitingui, a quebra dos laços
familiares o levou a ser morador de rua por 25 anos.
"Horas depois de nascer em Itu, fui
encaminhado para uma creche em São Paulo e fiquei lá até os seis anos, sem ter
contato nenhum com meus pais", conta.
Ao receberem alta, os pais de Ermelindo conseguiram
sair da colônia e foram morar com os filhos. Depois de se separarem, contudo, a
mãe de Ermelindo, por não conseguir se reintegrar à sociedade, voltou para a
colônia de Pirapitingui, onde vive até hoje.
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caption Grupo de filhos de pacientes que foram separados dos pais, pacientes de
hanseníase
"Meu pai foi morar com outra mulher e os
filhos. Com a morte dele, minha madrasta não me quis mais. Fui morar na rua e
depois em um orfanato, onde só podia ficar até os dez anos", lembra.
Aos 14 anos, Ermelindo foi encaminhado para a Febem
e lá viveu até os 18 anos. Liberado, passou a viver como morador de rua na
Praça da Sé.
"Eu lia os jornais na praça e, em 2011,
descobri que existia o Morhan e que eles fariam uma audiência pública em
Sorocaba para os filhos separados."
Ermelindo conseguiu ir de São Paulo para Sorocaba,
catando papelão e pedindo carona, e se apresentou aos membros do Mohran.
"Artur [coordenador do Mohran] me recebeu e me deu dinheiro para comer
naquele dia. Desde então, eu venci a cocaína, saí das ruas e tenho minha
casinha."
Memória da dor
Tanto Ermelindo como Helena fazem parte do Mohran e
lutam para que suas histórias e as de seus pais não sejam esquecidas.
"Hoje estou fazendo um projeto com o governo,
o 'Visitando a colônia', em que visitaremos todas as colônias do Brasil",
conta o ex-morador de rua. "Existe muito filho com sequela mental e muito
filho que nem sabe da sua história, que foi vendido inclusive para fora do
país. É por tudo isso que o governo precisa ser responsabilizado."
Em 2010, os filhos separados dos pais se reuniram
para discutir uma proposta de indenização pelo preconceito e perdas dos
vínculos familiares que sofreram, assim como o direito a tratamento psicológico
e o reconhecimento de crime pelo Estado.
O grupo pede urgência na ação do governo por se
tratar de pessoas com idades entre 50 e 80 anos. Segundo o coordenador nacional
do Morhan, Artur Custódio, há um anteprojeto de lei, que ainda não foi enviado
ao Congresso.
Os leprosários brasileiros
O primeiro leprosário surgiu no Brasil na época
colonial, em 1714, no Recife. A partir daí, os estados que mais concentraram
grandes colônias foram São Paulo e Minas Gerais.
"Como havia o desconhecimento nas formas de
transmissão e mecanismos de controle, o primeiro ato foi a proibição do contato
do paciente com o não paciente. Isso perdurou por muitos anos", conta a
historiadora Laurinda Rosa Maciel, consultora do Ministério da Saúde para
assuntos sobre a história da hanseníase no Brasil.
"O que se esperava era que, à medida em que a
ciência e a indústria de medicamentos avançassem, essas barreiras caíssem, mas
todas as mudanças de mentalidade são muito demoradas", explica
Segundo o sociólogo Luiz Antonio de Castro Santos,
professor aposentado do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj), a solução do governo para controlar a hanseníase no
século 20 se deu no campo da "polícia médica".
Isso, diz, consistia no trabalho de inspetores de
saúde que eram treinados em detectar possíveis portadores e isolavam os
doentes, ou aparentemente doentes, de maneira impositiva - tudo para eliminar o
suposto risco de contaminação.
"A lepra surge como 'questão de Estado' e é
declarada política de asilo e institucionalização dos enfermos desde
1902", explica o sociólogo. "Era uma leitura que conduzia a medidas
de excessiva precaução e policiamento dos corpos e relacionamentos do
paciente."
Trauma
Image copyright Acervo: Jaime
Prado Image caption Foto de arquivo de Jaime Prado, que hoje é funcionário do
hospital Lauro de Souza Lima, o antigo leprosário de Bauru
Em 1940, Nivaldo Mercurio foi internado
arbitrariamente no Asylo Colônia Aymorés, em Bauru, hoje um importante hospital
de dermatologia.
Anos antes, seus pais e irmãos já haviam sido
mandados para diferentes leprosários. Além de se separar da família, Nivaldo,
hoje com 90 anos, lembra que o Departamento de Profilaxia mandou queimar a casa
em que viviam - e com todos os pertences.
A experiência de ter vivido em um leprosário foi
tão traumática que, no dia em recebeu alta, Nivaldo ficou mudo por 31 anos. Um
dos poucos ex-pacientes de leprosário ainda vivos no Brasil, o aposentado nunca
mais conseguiu se reintegrar à sociedade por causa do preconceito e vive até
hoje em uma casa dentro da área em que era a colônia.
A exemplo do relato dele, há muitos depoimentos em
estudos e entrevistas de pacientes dos leprosários que comparam esses lugares a
"campos de concentração".
Mas, para a especialista Laurinda Maciel, a
comparação deve ser evitada.
"Não podemos analisar a criação dos
leprosários e de uma política excessivamente rigorosa sem, antes, compreender
de que tempo, de que sociedade e de que homens estamos falando. Não podemos,
com os olhos de hoje, quando sabemos ser uma doença de baixa contagiosidade e
de longuíssima incubação, julgar ações dos homens no passado", afirma.
O sociólogo Luiz Antonio de Castro Santos lembra
que leprosários existiram em outros países no mesmo período.
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caption Eloísio Silva (esq) se reúne com outros brasileiros que foram
arrancados de seus pais e enviados a educandários
"Nos Diários de Motocicleta, em 1952, o
então estudante de medicina Che Guevara e seu companheiro relatam a visita a um
leprosário no Peru. Escreveu Che: 'sentamos ao seu lado, jogamos futebol com
eles. O benefício psicológico de essas pobres pessoas serem vistas como seres
humanos normais é incalculável e o risco de ser contaminado, incrivelmente
remoto'."
Até hoje, não existem números oficiais precisos que
informem quantos pacientes passaram pelas colônias de leprosários, assim como o
número de filhos que foram separados de seus pais.
Boom na Era Vargas
Entre 1920 e 1950, foram inaugurados quarenta
asilos-colônias em todo o Brasil - 80% deles foram criados no governo de
Getúlio Vargas.
Segundo Laurinda Maciel, o governo do então
presidente foi o primeiro a criar um Ministério da Saúde. Antes, os problemas
coletivos da área eram tratados pelo Ministério da Justiça e Negócios
Interiores.
"Até 1930, o Brasil não era federativo e cada
Estado ou região, a depender de seus desejos em investir mais ou menos nas
questões de saúde, tinha liberdade para tal", explica Laurinda.
A pesquisadora conta que os investimentos não eram
feitos no combate à hanseníase até a década de 1920 por ela não ser uma doença
epidêmica.
"A hanseníase era uma doença endêmica. Ou
seja, é aquela doença devagar e sempre, e ninguém morre dela, mas morre de
febre amarela ou varíola, que são epidêmicas."
A cura da hanseníase no mundo foi descoberta na
década de 1940. "Mas obviamente essa cura é muito controversa: havia casos
de recidiva, a potência destes medicamentos não era tão precisa e seus efeitos
também eram controversos", explica.
A mudança no tratamento do hanseniano, na forma
ambulatorial empregada até hoje, somente se daria no Brasil na década de 1980,
quando passou a empregar a poliquimioterapia, que consiste no uso combinatório
de três medicamentos, a depender do caso.
Mas de acordo com Castro Santos, o avanço no
tratamento do hanseniano não promoveu, até hoje, a erradicação da doença no
Brasil, principalmente nos estados do Norte. Ele aponta como razão o
preconceito associado à hanseníase, a exemplo do que ainda ocorre com os
portadores de vírus como o HIV e vítimas de males como a tuberculose.
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copyright Acervo: Jaime Prado Image caption Imagem de arquivo mostra antigo
leprosário de Bauru
"Estigmatizados, inclusive pela família, os
portadores do bacilo da hanseníase não buscam tratamento, ou o abandonam.
Portanto, se faz necessária a presença constante de programas de educação em
saúde que tornem a prevenção e a superação do estigma pontos centrais nas
campanhas", afirma o sociólogo.
A maior mudança no tratamento dos hansenianos a
partir da década de 1980, para Luiz Antonio, se deu com a retirada do caráter
policial ao problema da lepra - além de discriminado, o portador do bacilo era
criminalizado.
Fonte: BBC Brasil