Por que
nosso leite materno é parecido ao da zebra - apesar de vivermos em ambientes
tão distintos?
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caption No Brasil, 50% dos bebês são amamentados pela mãe até completarem 1 ano,
segundo Unicef
Nove em cada dez copos de leite cru produzido no
mundo vêm de vacas domesticadas. A unidade restante vem principalmente de
cabras, búfalas, ovelhas e camelos. Alguns indivíduos consomem o leite de
certos ungulados domesticados ou semidomesticados, como alpacas, alces, lhamas
e iaques.
A operação mundial de laticínios produz cerca de
700 milhões de toneladas de leite a cada ano. Mas há uma espécie faltando nessa
lista de fornecedores de leite: a nossa.
Um levantamento recente do Fundo das Nações Unidas
para a Infância (Unicef) aponta que pelo menos 50% das crianças brasileiras são
amamentadas até completar 1 ano de idade.
Nos Estados Unidos, o Centro para o Controle e a
Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) afirma que mais de 75% das mães
americanas ofereceram ao menos alguma quantidade de leite materno para seus
bebês em 2013.
Composição variada
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caption Devido às condições extremas de seu habitat, o leite das
focas-de-crista contém 61% de gordura
Todos os mamíferos são capazes de produzir leite,
do ornitorrinco ao canguru e às espécies que se reproduzem mais rapidamente e
vivem em clãs, como coelhos, macacos e golfinhos.
Mas como cada espécie tem necessidades distintas e
vive em ambientes distintos, seus leites são também muito diferentes entre si.
Eles contêm ingredientes semelhantes, mas em distintas proporções.
A foca-de-crista, por exemplo, vive nas águas
gélidas do Atlântico Norte. Quando uma fêmea dá à luz, seus filhotes precisam
rapidamente formar uma camada interna de gordura para conseguir sobreviver.
Isso explica o fato de seu leite conter 61% de gordura e apenas 5% de proteínas
e 1% de açúcares.
Como essas focas dão à luz sobre lâminas de gelo
para evitar o risco de serem pegas por ursos polares, elas têm pouquíssimo
tempo para parir e alimentar seus filhotes. Nos primeiros quatro dias de vida
de cada cria, a mãe-foca precisa transferir para cada um até 7 quilos de
gordura por dia.
Já animais terrestres, que em geral dispõem de
espaço e de um longo período de tempo para nutrir seus filhotes, tendem a
amamentar durante muitas semanas ou meses. As mães oferecem um serviço de
"demanda livre" ao filhote, que mama quando tem fome. Assim, os
nutrientes são fornecidos em pequenas doses. Por isso, o leite de
rinocerontes-negros contém apenas 0,2% de gordura, e o leite de gorilas
apresenta 1,5% dessa substância.
Mulheres e zebras
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caption O leite da zebra é surpreendentemente semelhante ao humano, com cerca
de 90% de água
O leite materno humano fica em um ponto mediano
entre esses dois extremos. E, assim, como o de todas as espécies, trata-se de
um equilíbrio entre as necessidades nutricionais da mãe e as do bebê.
Recém-nascidos humanos exigem um período longo de
cuidados após o nascimento. Isso significa que suas mães produzem um leite mais
diluído. Se o leite materno fosse tão rico em gordura quanto o da
foca-de-crista, as mães não teriam energia suficiente para o resto de suas
atividades.
O leite humano contém apenas 4% de gordura, 1,3% de
proteínas e 7,2% de lactose. Cerca de 90% do líquido é água.
Segundo as antropólogas Katie Hinde e Lauren
Milligan, da Universidade de Harvard e da Universidade de Berkeley, um animal
selvagem totalmente diferente de nós produz um leite bastante semelhante ao
humano, com 2,2% de gordura, 1,6% de proteínas e 7% de lactose. Trata-se da
zebra.
Os dois leites se caracterizam pelo alto conteúdo
de água e pela baixa densidade energética, com a maior parte das calorias vinda
dos açúcares do que da gordura. Ainda assim, as duas espécies são separadas por
95 milhões de anos de evolução.
Desafios da sobrevivência
É possível que a evolução tenha feito o ser humano
produzir um leite mais diluído por causa da taxa de desenvolvimento
extremamente lenta de nossos bebês. Já a zebra evoluiu em um ambiente muito
seco e árido. Ao oferecerem mais água a seus filhotes, as mães zebras os ajudam
a tirar partido dos benefícios da transpiração.
Nossos leites podem ser parecidos do ponto de vista
nutricional, mas evoluíram de acordo com diferentes conjuntos de desafios de
sobrevivência.
Para entender melhor a evolução do leite, a bióloga
Amy Skibiel, da Universidade Auburn, nos Estados Unidos, analisou a composição
do alimento de 130 mamíferos diferentes.
Ela descobriu, por exemplo, que espécies
relacionadas entre si têm mais chances de ter leites parecidos.
Além disso, outro bom indicador da composição do
leite é o tempo que uma espécie passa amamentando. Enquanto a foca-de-crista
amamenta por apenas quatro dias, golfinhos-nariz-de-garrafa o fazem ao longo de
18 meses.
Outro indicador é a própria alimentação da mãe:
mamíferos carnívoros, como os tigres, têm mais gordura e proteína em seus
leites em comparação aos que se alimentam essencialmente de folhas, como
girafas e gazelas.
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caption O synapsida, que viveu 160 milhões de anos atrás, é apontado como o
primeiro animal produtor de leite
De soro a alimento
É possível que o leite tenha surgido há 160 milhões
de anos. E, apesar de sua importância na nutrição de recém-nascidos, estudiosos
destacam que as duas principais teorias para a função inicial do alimento
apontam que não há nada relacionado à nutrição.
Uma das hipóteses é a de que o leite tenha surgido
como um meio de incrementar o sistema imunológico dos bebês. Os anticorpos
transmitidos de mãe para filho podem ajudar o pequeno a se proteger de agentes
infecciosos a que a mãe está exposta e que podem ser uma ameaça à vida dos mais
novos.
A outra tese é a de que o leite surgiu nos
mamíferos ovíparos - como o ornitorrinco - como uma substância usada para
manter a umidade da casca dos ovos onde o embrião se desenvolve.
Os bebês ornitorrincos se alimentam desse leite
materno, mas, em vez de sugar em mamilos, eles lambem o líquido contido em
glândulas sudoríparas modificadas.
Portanto, seja qual for o motivo pelo qual o leite
evoluiu, é graças a um mamífero colocador de ovos e que viveu há 160 milhões de
anos, chamado synapisda, que nós hoje podemos crescer fortes e saudáveis na
primeira infância.
Isso sem falar nas invenções que fazem a delícia de
nosso paladar durante toda a vida, como a manteiga, o iogurte, os queijos e o
sorvete.
Fonte: BBC Brasil