Sabe aquele papo que o FMI afirmou que o “neoliberalismo” não funciona? É mentira.
Você
provavelmente já ouviu falar muito nele: o Fundo Monetário Internacional –
que você conhece como FMI. Ele não precisou fazer grandes coisas para ser
conhecido por aqui como um grande vilão. Pra muita gente, a organização não
passa de um grupo de economistas estrangeiros com pouca ou nenhuma convivência
com a nossa cultua e história achando que sabem melhor sobre o que fazer
com o nosso país do que nós mesmos – leia-se: demitir funcionários públicos,
reduzir gastos do governo, privatizar estatais e outras tantas medidas que
limitam o poder de atuação do Estado no país.
Mas
o que ocorreria então se o “médico” viesse a público admitir que suas medidas
falharam, ou mesmo que não eram a solução correta? Segundo a imprensa
brasileira, essa é a conclusão de um artigo publicado em junho pelo Fundo. Só
tem um problema: o FMI nunca disse isso.
Publicado no
início de junho, o artigo “Neoliberalism: Oversold?” possui apenas 4
páginas. Mas não se engane, é o suficiente para causar todo este alvoroço. Para
qualquer um que tenha lido apenas a manchete “FMI admite que neoliberalismo é um
fracasso”, como noticiado na imprensa brasileira, talvez seja difícil
entender por que os três autores dedicam boa parte da primeira página a rasgar
elogios aos resultados do que chamam de “agenda” neoliberal – à globalização,
às privatizações e ao livre-comércio. Segundo os autores, não há dúvida de que
essas ações tenham colaborado imensamente na redução da pobreza nas
últimas décadas.
Mas então, o
que eles criticam? Afinal, de onde saiu esta manchete?
Não é
difícil imaginar que toda essa confusão causada tenha origem
exatamente no titulo do artigo. Neoliberalismo é destes conceitos que
muitas vezes mais confundem que explicam. Por isso é preciso ter em
mente uma coisa muito importante antes de qualquer comentário sobre o
artigo em si: o que o FMI entende por neoliberalismo passa algumas milhas
de distância daquilo que seu professor de história provavelmente compreende e
lhe ensinou em sala de aula.
Qualquer um
que procure por neoliberalismo em livros sobre filosofia política ou história,
possivelmente encontrará dezenas de obras a respeito – em sua maioria escrita
por autores que criticam o que chamam de “fenômeno do neoliberalismo”.
Supostamente, este tal fenômeno teria surgido como resposta à teoria dominante
na economia mundial na época, derivada do ‘Keynesianismo’, uma doutrina
fortemente baseada em intervenção estatal. O neoliberalismo, segundo dizem, é
uma corrente que alinha um pensamento liberal a atitudes políticas mais
regulatórias. Um liberalismo pós-fracasso do livre mercado em 1929! É a
narrativa perfeita. O “neo” aqui dá a entender que o fracasso do liberalismo
seja um consenso adotado até mesmo por liberais, que agora se auto-intitulariam
“novos liberais”.
Para o FMI e
a ciência econômica, no entanto, essa teoria não faz muito sentido. De fato, na
economia inúmeras escolas e idéias nasceram durante o período dos anos
setenta (até mesmo o “neokeynesianismo” que, ao contrário do
neoliberalismo, é uma escola com idéias novas e autores bem definidos). E isso
tudo aconteceu exatamente pelo fracasso da política econômica dominante.
A falha deste modelo pode ser resumido pela chamada “estagflação” –
uma estagnação econômica somada à inflação elevada, que era então considerada
impossível de ocorrer e que, no entanto, foi justamente o que varreu o mundo
neste período. O reformismo em inúmeros países, como nos Estados Unidos, na
Inglaterra, no Chile e posteriormente no mundo inteiro, foi consequência direta
desta situação.
Para os
autores que escreveram o artigo, neoliberalismo pode ser resumido em
dois pilares: liberalização do fluxo de capitais (em outras palavras,
tornar mais fácil a entrada e saída de dinheiro estrangeiro no país) e redução
da capacidade de endividamento do governo (basicamente, impedir que a dívida
pública cresça e o governo possa ter déficit por longos anos).
Em outras
palavras, o neoliberalismo aqui não é uma teoria liberal, mas uma prática comum
adotada por governos em dificuldades. Não se trata de uma ambição defendida por
liberais de qualquer natureza, tampouco uma causa que mereça simpatia.
Trata-se de mera sobrevivência de governos – sejam eles de esquerda ou de
direita.
Sob o ponto
de vista dos autores, portanto, seria possível alegar que nenhum outro governo
na história brasileira foi tão “neoliberal” quanto o primeiro governo Lula, quando o chamado “superávit primário”, medida
recomendada pelo banco para controlar a dívida pública, chegou ao seu maior
nível. Lula e sua equipe econômica, comandada por Palocci, seguiram a risca
toda cartilha do banco: câmbio flutuante, superávit primário (que é o mesmo que
gastar menos do que se arrecada e assim pagar os juros da dívida) e metas de
inflação.
Se para
você, entretanto, neoliberalismo significa privatizações, flexibilização de
leis trabalhistas, abertura do mercado de capitais, liberalização do comércio,
redução do papel do Estado na economia e todas as ações genéricas que descrevem
este conjunto de medidas, você provavelmente ficaria surpreso em saber que o
mais bem sucedido plano neste sentido nem de longe foi tocado por Margaret
Thatcher ou Ronald Reagan. Pelo contrário. Foi direcionado por um certo Partido
dos Trabalhadores. Mas não vá pensando que Lula tem alguma coisa a ver com
isso. Aconteceu na Nova Zelândia. E ficou conhecido como “Rogernomics”.
As medidas
neo-zelandesas, a “Nova Gestão Pública”, nortearam planos de ajuste
em todo o mundo. Na mesma época, o FMI ficou conhecido exatamente por sugerir
que estas medidas fossem complementadas com um aumento da liberalização de
capitais. E sabe o mais engraçado dessa história toda? Num tempo de maior
apoio do banco a estas medidas, o FMI era então presidido pelo socialista
francês, Michel Camdessus.
Em resumo:
quer um neoliberalismo bem feito? Vire à esquerda. Que o diga o Partido dos
Trabalhadores da Nova Zelândia e Camdessus.
OK, mas onde está o fracasso anunciado na manchete,
afinal?
Se fizesse
uma turnê pelo Brasil, o artigo dos três economistas provavelmente teria
dificuldade em adaptar-se ao público local. Em uma abordagem honesta, o
texto teria de conter o subtítulo “Brasileiros: Isto não é sobre
vocês!”. Em resumo, as críticas dos autores em absolutamente
nada possuem correlação com ajustes passados ou presentes do Brasil.
Para se
fazer um ajuste bem feito, aquele que resulte em controlar a dívida pública de
forma eficaz, é preciso agir de duas formas: ou elevar o crescimento da
economia e manter os gastos alinhados a receitas, reduzindo desta forma a
relação “dívida/PIB” no futuro, ou gastar menos que a receita, gerando um
“superávit”. Não tem como escapar.
Para os três
pesquisadores, a adoção de medidas muito extremas de redução de gastos, ou a
elevação de impostos, pode levar a uma redução do crescimento no futuro. O que
pode ocorrer inclusive graças ao aumento da desigualdade. Duas consequências
ruins em uma só. Neste ponto é importante destacar que os autores fizeram um
“salto” entre duas conclusões. Concluíram que um ajuste fiscal eleva a
desigualdade, e então pegaram a conclusão de outro artigo – de que a
desigualdade elevada reduz o crescimento econômico.
O aumento da
desigualdade por sua vez é decorrência quase sempre do fato de que ajustes
fiscais possuem como causa o aumento de impostos e a redução de serviços
prestados à população. De ambos, os mais ricos conseguem escapar. Os mais
pobres não.
Para países
ricos, o artigo ressalta, a necessidade de se fazer grandes cortes de gastos
não é tão urgente. Isso ocorre por que tais países conseguem se financiar a
taxas de juros muitas vezes próximas de
zero.
Em resumo:
imagine que alguém lhe ofereça um empréstimo com prazo de 5 anos e juros de 1%
ao ano. Você prefere tomar o empréstimo ou cortar aquele plano de saúde ou a
escola dos seus filhos? Para os pesquisadores, ao preferir cortar gastos, os
governos de países como da Inglaterra ou da Alemanha estariam sacrificando
desnecessariamente sua população.
Só há um
problema para nós: apesar de também aplicarmos um 7×1 contra o Haiti, nós não
somos alemães. Muito menos ingleses.
Afinal, onde o Brasil entra nessa história?
Lula e seu presidente do Banco Central, Henrique
Meirelles, atual Ministro da Fazenda do governo Temer.
O resultado
do ajuste fiscal citado pelos três economistas (e é importante ressaltar que
essa não se trata da opinião do FMI, mas deles) é semelhante aquele pelo qual
passamos no início dos anos 2000. Como mostram os autores, a consequência
destes ajustes em países pobres ou emergentes pode ser positiva.
Como mostra
um outro estudo do Fundo – que você não verá noticiado pela
imprensa brasileira – reduzir impostos em países pobres é uma medida que
colabora para o crescimento de longo prazo. Vivemos portanto uma situação
distinta daquela vivida por estes países.
No nosso
caso a pergunta faz um pouco menos de sentido, uma vez que não há interessados
em emprestar recursos ao governo brasileiros a juros nem mesmo próximos de
zero. Pelo contrário. Pagamos taxas de juros extremamente elevadas,
tornando a opção de economizar dinheiro e manter a dívida controlada uma opção
mais racional. O que o artigo mostra é exatamente que, em nosso caso, a
medida de controle nos gastos públicos seria mais do que bem-vinda.
E a
liberalização do fluxo de capital?
Para os
autores, apesar do nome bonito, esta medida deve ser tomada com cautela. Mas,
novamente: se você é a Inglaterra, dona da Libra, uma das moedas mais fortes do
mundo, tudo bem permitir maior facilidade no fluxo de capitais, visto que
dificilmente você terá sobressaltos e grandes especulações com sua moeda, e no
final ainda lucrará com isso. Se você é o Brasil, no entanto, um país que
teve 9 calotes na dívida entre 1898 e 1985, é melhor ter cuidado na entrada e
saída de capital, pois pode acabar se prejudicando.
As medidas
defendidas pelos autores têm um enorme valor ao defender que o FMI passe a
adotar algo até então pouco valorizado: considerar casos de forma independente.
O mundo é um local muito pouco homogêneo para que medidas adotadas no Japão
tenham o mesmo efeito no Brasil, não é mesmo? Cultura, instituições e outros
tantos fatores acabam todos reagindo de forma distinta.
Dê um cartão
de créditos sem limite a um brasileiro e outro a um alemão, e presencie o
resultado. Se o final da história for distinto, o FMI tem sua razão em fazer
recomendações distintas. Quem dificilmente terá razão no futuro é a mídia que
mente e faz um alarde do tamanho do mundo só para garantir uns cliques a mais.
Além daquele seu amigo descolado que compartilha o conteúdo sem fazer a menor
ideia do que está passando adiante.
Fonte: www.spotniks.com
Gaspar Moura dos Santos