Dolorosa e duradoura,
'chikungunya vai ser surpresa maior que zika’, diz pesquisador
Em até 50% dos casos de chikungunya, pacientes ficam com dores crônicas
e incapacitantes por meses ou anos
O pesquisador Carlos Brito, primeiro a levantar a
hipótese de relação entre zika e microcefalia em Pernambuco, continua
preocupado.
Apesar da chegada do inverno, quando diminuem os
ataques do mosquito Aedes
aegypti - transmissor de dengue, zika e
chikungunya -, ele aposta que as doenças continuarão sendo a
principal fonte de problemas para o governo do presidente interino Michel
Temer.
E o impacto maior pode vir de onde menos se espera.
Segundo Brito, cientista da UFPE (Universidade
Federal de Pernambuco) e membro do Comitê Técnico de Aboviroses do Ministério
da Saúde, onde atua como consultor, a dispersão da febre chikungunya pelo
Nordeste tem deixado um rastro de adultos e idosos com dores crônicas graves
que sobrecarrega os serviços de saúde, já impossibilitados de atender a demanda
normal.
"O grande desafio para o governo serão essas
grandes epidemias. Ainda não sabemos a dimensão do que vai acontecer com a
epidemia de zika em outras regiões do país".
"Mas a chikungunya vai trazer mais surpresas
do que a própria zika e a dengue. Como pesquisador, tenho ficado impressionado
com seus efeitos."
Enquanto a dengue é capaz de atingir cerca de 5 a
10% de uma população, a chamada "taxa de ataque" da chikungunya pode
chegar a 50%, avalia Brito. A zika, cujo percentual de atingidos ainda é
desconhecido, deve ficar entre as duas, ele estima.
Números subestimados
De acordo com os dados mais recentes divulgados
pelo Ministério da Saúde, já são mais de 64 mil notificações de casos de
chikungunya até 23 de abril de 2016, contra 38 mil em 2015. Mais de 11 mil
casos foram confirmados em todo o país.
Brito, no entanto, diz acreditar que os números são
muito maiores.
"Pernambuco, por exemplo, está dizendo que o
maior número de casos este ano é de dengue, mas nós vemos pouquíssima dengue na
prática. O maior número é de chikungunya, e há uma subnotificação
impressionante por uma série de razões, incluindo despreparo dos profissionais
para fazer as notificações de forma correta", afirma.
"Com três vírus circulando no país, o modelo
da vigilância epidemiológica não consegue ser mais fiel à verdadeira situação
da epidemia."
Os próprios pacientes do interior brincam dizendo
que saem nas ruas e parece que estão em uma cidade de múmias, porque as pessoas
andam com dificuldade Carlos Brito, pesquisador.
Até o dia 24 de maio, Pernambuco registrou mais de
30 mil casos notificados de chikungunya e cerca de 75 mil de dengue, segundo a
Secretaria de Saúde do Estado.
"Quando começaram a aparecer os casos de
microcefalia em Pernambuco, o Estado tinha 4 casos notificados de zika e 120
mil de dengue. Destes, provavelmente cerca de 90 mil eram zika. O mesmo deve
estar acontecendo agora com a chikungunya."
Em fevereiro, a reportagem da BBC Brasil visitou
Vitória de Santo Antão, a 60 km de Recife, e encontrou emergências hospitais e
postos de saúde superlotados com pacientes de arboviroses (grupo que inclui as
doenças transmitidas por mosquitos) - o Estado estava no meio de seu primeiro
surto de chikungunya.
Em bairros da cidade, moradores relatavam a rapidez
com que a doença se espalhou por famílias e ruas.
"Já passamos do surto, mas os próprios
pacientes do interior brincam dizendo que saem nas ruas e parece que estão em
uma cidade de múmias, porque as pessoas andam com dificuldade", afirma
Brito.
Image copyright AFP Image caption Vírus foi trazido
por funcionário da construção civil que veio de Angola para visitar a família
na Bahia em 2014
Impacto
Ao contrário do que ocorre com a zika, ainda não há
evidências de que o vírus da chikungunya seja transmitido da mãe para os bebês
durante a gravidez, segundo o Ministério da Saúde. No entanto, a doença tem
suas próprias peculiaridades.
Em seus primeiros dez dias, os sintomas costumam
ser febres, fortes dores e inchaço nas articulações dos pés e das mãos. Em
alguns casos, ocorrem também manchas vermelhas no corpo.
Mas mesmo com o fim da viremia - período em que o
vírus circula no sangue - a dor e o inchaço causados pela doença podem retornar
ou permanecer durante cerca de três meses. Em cerca de 40% dos casos, eles
tornam-se crônicos e podem permanecer por anos.
"A intensidade do sofrimento dos pacientes
para mim foi uma surpresa, mesmo que a literatura já falasse disso", diz
Brito.
"São pessoas que podem ficar meses sem
conseguir trabalhar, com dores muito intensas que não melhoram com analgésicos
habituais como dipirona e paracetamol", continua.
"Elas têm dificuldade de andar, de pentear o
cabelo, de tomar banho sozinhas. E isso acontece na parte produtiva da vida,
porque a maioria dos acometidos são adultos e idosos. Então além do impacto na
qualidade de vida, há também um impacto econômico de dimensão ainda não
calculada."
Depoimento: 'Não sou mais a mesma pessoa'
Conceição Carneiro: 'Já não conseguia escrever, não conseguia sentar,
nem andar, nem ir ao banheiro. Parecia que meu corpo estava paralizado pela
dor'
Peguei chikungunya em setembro de 2014, quando a
epidemia começou em Feira de Santana. Tive febre, dores no corpo e fiquei uma
semana afastada com o mal estar. Na época, não fiz o exame sorológico. Me
recuperei, mas continuei tendo inchaço no corpo, principalmente as pernas, com
frequência. Fiz diversos exames com especialistas, porque não imaginei que
fosse da chikungunya.
Em setembro de 2015, eu passei a sentir dores muito
fortes. Já não conseguia escrever, não conseguia sentar, nem andar, nem ir ao
banheiro. Parecia que meu corpo estava paralisado pela dor. Fiquei internada
por dois dias e a sorologia identificou o vírus.
Desde então, eu não tenho mais vida social. Às
vezes sento e não consigo me levantar. Tem dias em que não consigo ir ao
trabalho. Não calço mais salto alto, não abaixo mais para pegar nada no chão.
Acordo à noite sentindo dores, dormência nas mãos, cãimbra nas pernas, não
durmo bem.
Eu perdi todas as roupas porque ganhei cerca de 18
quilos. Não consigo fazer atividades físicas. Já tentei pilates,
hidroginástica, caminhada, mas não aguento, porque os nervos estão inflamados.
A medicação que tomo é forte e eu não vejo muito resultado. A médica me disse
que tenho que tomar por tempo indeterminado, porque não sabemos quando ficarei
bem.
Não consigo mais ir a festas porque não aguento
ficar em pé nem sentada por muito tempo. Só a gente não poder se arrumar como
quer já mexe com a autoestima. Não uso mais anéis, porque os dedos começam a
inchar.
Antes eu morava sozinha e era independente, mas
hoje moro com minha sobrinha porque não consigo fazer muita coisa. Não consigo
pegar uma garrafa térmica para colocar o café na xícara. Minhas mãos não a
sustentam.
Pedi auxílio-doença no INSS em outubro, com os
relatórios das médicas. Mas foi no período em que os peritos estavam em greve.
Então eu fiquei sem receber meu salário nem o auxílio durante 3 meses. Passei
dificuldade financeira, foi minha família que me deu suporte. Em janeiro eu
tive que voltar ao trabalho, mesmo sem condições.
A sensação que a gente tem é de ser um robô, uma
múmia, o corcunda de Notre Dame. Por pouco não fiquei deprimida. Tomei
antidepressivos por quatro meses porque as médicas perceberam alterações no meu
humor.
Tem dias em que você acorda mais animada, mas aí
vem aquela sensação de desgaste físico como se você tivesse corrido uma
maratona. Não sou mais a mesma pessoa. Ando pelas ruas me segurando nas
paredes.
Conceição Carneiro, de 40 anos, é assistente social
e mora em Feira de Santana, na Bahia.
Competição
Pesquisadores afirmam que o vírus da febre
chikungunya entrou no Brasil em julho de 2014, trazido por um funcionário da
construção civil brasileiro que trabalha em Angola e veio visitar a família em
Feira de Santana, na Bahia.
"O vírus entrou no inverno, quando não tinha
muita circulação no mosquito. Mas eu fui para lá e saí alertando que havia um
risco muito alto de a epidemia ser grande", relembra Brito.
"Só que nesse meio tempo começaram a aparecer
outros casos de uma doença que parecia dengue, mas não sabíamos o que era. Era
a zika. Esses vírus competem e uma epidemia sempre predomina", explica.
"O que provavelmente aconteceu foi que
esperávamos que a chikungunya fosse de Feira de Santana para o resto do
Nordeste, mas a zika entrou na frente. Aí todo mundo ficou voltado para a zika,
especialmente após os casos de microcefalia, e a gente esqueceu da
chikungunya."
Na região de Feira de Santana, no entanto, a
primeira epidemia da febre ocorreu a partir de setembro de 2014, e os efeitos
são sentidos até hoje.
"Na época do surto, aumentou mais de 100% a
demanda nas emergências, tanto públicas quanto privadas", disse Melissa Falcão, infectologista da Vigilância Epidemiológica de Feira de
Santana.
"Agora tenho pacientes que estão doentes há
quase dois anos. E mais de metade deles têm um grau de depressão ou alteração
de humor. Imagine conviver com uma dor intensa e prolongada que você não sabe
quando vai acabar."
Em casos crônicos, os pacientes podem sofrer de
insônia, dormência nos membros, cãimbras e dificuldades de caminhar. A doença
pode causar inflamação nos nervos ou iniciar doenças reumatóides, como a
artrite.
Além disso, também pode desestabilizar doenças cardíacas,
problemas renais e diabetes. Nos casos mais graves, pode causar a síndrome de
Guillain-Barré e outros problemas neurológicos graves, do mesmo modo que a
zika.
Ela atinge adultos e idosos com mais força. Em
crianças, as manifestações costumam ser mais leves, de acordo com Falcão.
Pernambuco
investiga aumento de mortes relacionadas a epidemia de febre chikungunya
Mortes
Carlos Brito também suspeita que a doença seja
responsável por um aumento no número de mortes de idosos em Pernambuco
registrado desde o início do surto.
O Estado registra atualmente 22 óbitos relacionados
à chikungunya, e outros estão sendo investigados.
Ele ressalta, no entanto, que o fato de o vírus
agravar doenças crônicas comuns em idosos pode ter feito com que muitas mortes
não tenham sido inicialmente relacionadas a ele.
No inverno de 2015, um ano depois da chegada do
vírus à Bahia, a chikungunya chegou com mais força em Pernambuco, no Rio Grande
do Norte e na Paraíba. Juntos, todos esses Estados registram a maior parte dos
casos, de acordo com o Ministério da Saúde.
"Não tenha dúvidas de que zika e chikungunya
vão atingir São Paulo. Elas não ficarão só no Nordeste. A dengue também começou
em partes específicas do país. Só que a velocidade de zika e chikungunya
atingirem o país como um todo vai ser muito maior do que a da dengue", diz
Brito.
O Ministério da Saúde afirmou que o SUS
disponibiliza acesso integral aos tratamentos para os pacientes com chikungunya
e "oferece medicamentos, como paracetamol e dipirona, entre outros, e
tratamento dos sintomas da doença".
Brito afirma, no entanto, que os medicamentos
comuns não são suficientes para o tratamento da dor, e que muitos profissionais
de saúde estão tratando doentes de forma incorreta.
Junto a outros pesquisadores, ele elaborou um novo
protocolo para o tratamento, que deve ser anunciado pelo ministério nos
próximos dias e tende a demandar mais custos, por exigir mais doses dos
remédios.
O Ministério da Saúde afirmou que, entre janeiro e
março de 2016, repassou aproximadamente R$ 60 mil aos gestores dos serviços de
saúde para internações por chikungunya.
O ministro Ricardo Barros assumiu a pasta no dia 24
de maio, mas, até o momento, não foram anunciados os nomes que assumirão cargos
importantes no combate a essas epidemias, como o secretário de Vigilância em
Saúde e o diretor de Vigilância das Doenças Transmissíveis.
Ainda não há previsão de desenvolvimento de uma
vacina contra o vírus.
Fonte:BBC Brasil
Gaspar Moura dos Santos