Neurocientista defende
universidades geridas como empresas: 'É preciso demitir quem não produz'
O Ministério que cuidava da Ciência agora tem que
cuidar de Comunicação também, e eu francamente não vejo o que é que uma coisa
tem a ver com a outra", diz pesquisadora
Pouco mais de uma semana após trocar o Instituto de
Ciências Biomédicas da UFRJ Brasil por uma universidade nos Estados Unidos, a
neurocientista Suzana Herculano diz não estar tendo problemas para adaptar-se
à nova realidade.
"Aqui, mesmo quando as coisas não funcionam,
elas acabam sendo resolvidas rapidamente", disse por telefone, da
Universidade Vanderbilt, em Nashville, no Estado do Tennessee.
"O que não funciona aqui no momento, para você
ter ideia, é que o meu sobrenome é grande demais para caber nos formulários
(risos). É muito legal trabalhar numa universidade que tenha a estrutura ágil
que qualquer empresa tem. As universidades brasileiras, as públicas, pelo
menos, não tem."
No início de maio, em artigo da revista Piauí,
a pesquisadora carioca - que estuda o funcionamento do cérebro humano e de
outras espécies de mamíferos - descreve as dificuldades para produzir ciência
de nível internacional no Brasil, como a burocracia para comprar equipamentos e
as dificuldades de financiamento.
Apesar de ter publicado trabalhos de repercussão
mundial, como o que defende a hipótese de que cozinhar alimentos permitiu aos ancestrais
do homem sustentarem um cérebro maior, e um estudo, publicado na revista
Science, sobre como o córtex cerebral se dobra, Herculano-Houzel, chegou a
usar o próprio dinheiro para cobrir despesas de seu laboratório. Em 2015, fez
uma "vaquinha", uma campanha de financiamento coletivo na internet,
para conseguir manter a produção por alguns meses.
Ela critica o que diz ser falta de meritocracia nas
universidades federais, onde professores têm salários fixos independentemente
do que produzem, e afirma que "não dá para ser otimista no Brasil nesse
momento".
Confira os principais trechos da entrevista:
Pergunta - Em seus
artigos sobre a dificuldade de fazer ciência no Brasil, você menciona não só
problemas de financiamento via governo federal e estadual, mas uma certa
resistência da universidade onde trabalhava de aumentar seu laboratório por
achar que você "não precisaria de mais espaço", mesmo após o
reconhecimento internacional. A mentalidade nas universidades brasileiras
também dificulta a pesquisa?
Resposta - O
sistema do funcionalismo brasileiro, que se estende às universidades, encoraja
o engessamento e diz a alguns professores: "agora que você chegou até
aqui, não precisa se preocupar em fazer mais nada. Agora que você conquistou esse
laboratório grande, vai tê-lo até o fim dos seus dias, não importa que outros
pesquisadores mais jovens, recém-contratados ou que produzam mais precisem
desse espaço".
Tudo isso porque mérito não importa. Não importa o
que você produz, os seus direitos e o seu salário já são garantidos pelas
regras do funcionalismo. E isso é mortal. Isso garante os direitos de quem já
está por cima, mas é extremamente frustrante para quem está em começo de
carreira e interessado em produzir.
É preciso ter um ambiente que estimule a
meritocracia e recompense o esforço. Mas para esse ambiente meritocrático
funcionar, é preciso que quem não produz seja afastado. Exatamente como em
qualquer empresa. É preciso pensar na possibilidade de demitir professores,
coisa que as pessoas que hoje têm estabilidade na academia não vão querer
nunca.
Pergunta - Você já
disse que falar em meritocracia era mal recebido no ambiente das universidades
públicas por ser entendido como defesa da privatização. O que pensa da ideia de
privatizar as universidades?
Resposta - Me dei
conta de que muitas dessas críticas são falácias dos opositores à ideia de
meritocracia. Introduzir meritocracia e acabar com a estabilidade (na
universidade) não é, de maneira alguma, sinônimo de privatização, mas os
críticos fazem parecer que sim. Qualquer proposta de mudar a estrutura atual da
academia do Brasil vai para o balde do "querem privatizar as
universidades".
Não estou falando de privatizar a pesquisa nem de
privatizar a universidade, de modo nenhum. Eu não entendo, francamente, por que
universidades não podem continuar sendo empresas federais, mas gerenciadas como
empresas - com flexibilidade não só de compras e aquisições (de equipamento),
mas também de contratação e afastamento (de pessoal).
Pergunta - Você
também afirmou que a distribuição de recursos para regiões menos desenvolvidas
do Brasil dificultava a criação de centros de excelência, mas muitos
pesquisadores fora do Sudeste e do Sul reclamam de uma concentração de
investimentos nestas regiões. Como garantir uma distribuição justa de recursos
e, ao mesmo tempo, incentivar a pesquisa de ponta?
Resposta - Não
adianta, a solução é ter mais dinheiro. O que acontece no momento é que o pouco
dinheiro que os centros de excelência nas regiões Sul e Sudeste poderiam
receber, que já é insuficiente, se torna ainda menor porque uma parcela desses
recursos precisa ser transferida para Norte-Nordeste. O que é uma política
perfeitamente válida. O problema é que os recursos são insuficientes.
Então acaba que nem bem você consegue formar
centros de pesquisa nas regiões Norte e Nordeste - que também precisariam de
muito mais dinheiro -, nem bem consegue manter o funcionamento dos centros de
excelência já existentes no Sul e no Sudeste. A única maneira de resolver o
problema é aumentar o investimento.
O problema é para que esse investimento direcionado
de recursos na região Norte-Nordeste seja realmente efetivo é preciso que o
volume de recursos seja grande o suficiente para permitir levar pessoas para
lá, mas não é.
Como é que você vai atrair expoentes para formar um
novo centro de pesquisas em Fortaleza, por exemplo, se você não pode oferecer
um salário atraente para atrair um pesquisador da Alemanha, da França, da
Holanda?
Não precisa nem ser pesquisador estrangeiro, só repatriar
um pesquisador brasileiro, por exemplo, que está trabalhando em Bruxelas com um
laboratório maravilhoso e o financiamento da União Europeia. Temos que aumentar
o financiamento como um todo e mudar as políticas de contratação. Atualmente
não é atraente fazer ciência no Brasil.
Apesar de reconhecimento internacional de seu
trabalho com cérebros, Herculano-Houzel teve que fazer "vaquinha"
para laboratório
Pergunta - Buscar
o financiamento de empresas para laboratórios e pesquisadores seria uma opção?
Resposta - O que
eu acho fundamental que exista é investimento privado, sim, mas de instituições
criadas especificamente para financiar pesquisa. Aqui nos EUA há inúmeras
possibilidades de conseguir apoio financeiro para pesquisa dessas instituições
privadas de fomento que são filantrópicas.
O financiamento privado de empresas é outra coisa
que também existe em alguns países. No Brasil, Campinas é um pólo de bom
relacionamento entre a universidade e a indústria local. O risco disso é
algumas pessoas usarem o argumento de que a ciência no Brasil está falida
porque a indústria não investe.
Não, senhor. A ciência no Brasil está falida porque
o governo não investe e investimento em ciência é papel dos governos federal e
estadual. Uma vez que exista ciência viável porque governos fizeram os
investimentos devidos, aí sim existe a possibilidade de você criar parcerias
com empresas e com indústria, o que é muito interessante, mas não deve ser
considerado nem a tábua de salvação da ciência brasileira, nem a maneira como a
ciência deveria ser financiada.
Pergunta - O
orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação teve cortes de quase
R$ 2 bilhões durante o governo Dilma, e você chegou a criticar o principal
programa do governo na área, o Ciência sem Fronteiras. Como vê o futuro da
pesquisa científica e do incentivo à pesquisa no Brasil?
Resposta - As
perspectivas para o setor de ciência no Brasil são ainda mais sombrias. O
Ministério que cuidava da Ciência agora tem que cuidar de Comunicação também, e
eu francamente não vejo o que é que uma coisa tem a ver com a outra.
Não vejo perspectiva de o orçamento da Ciência e
Tecnologia aumentar, o governo só fala de cortes, e ao mesmo tempo a gente vê a
aprovação de aumento de salários para o Judiciário e outros.
Não vejo como ser otimista no Brasil neste momento,
não em relação à Ciência. O que a gente vê a décadas é uma desvalorização da
Ciência por profunda falta de conhecimento dos políticos.
Pergunta - A
estudante da rede pública carioca Lorrayne Isidoro, de 17 anos, virou notícia
ao vencer a Olimpíada Nacional de Neurociência e fazer uma vaquinha, como a que
você fez, para participar da competição internacional. O que sentiu ao saber da
história dela?
Resposta - Senti
tristeza, de certo modo. Lorrayne teve a sorte de estudar num excelente colégio
público federal, onde a professora dela certamente é muito mais bem paga do que
professores de outras escolas públicas estaduais e municipais. O (colégio)
Pedro 2º é uma escola bem equipada. Isso tudo certamente ajudou muito, sem
desmerecer a motivação e a força de vontade dela, que são extraordinárias.
Mas o triste é que vejo pessoas como ela chegarem
na iniciação científica na universidade e rapidamente desistirem porque as
condições de trabalho são péssimas.
A perspectiva é que depois de 4 anos na
universidade eles assinarão um papel que os limita a receber uma bolsa de não
mais de R$ 1.200 por dois anos (no mestrado), para depois passarem outros 4
anos com uma bolsa de R$ 2.200 por mês (no doutorado).
Essa vai ser a renda máxima deles nos próximos seis
anos depois de formados, enquanto um engenheiro químico sai da universidade já
com um piso salarial estipulado em oito salários mínimos. É extremamente
desestimulante.
A ciência é muito dependente desses jovens que
trabalham nos laboratórios, que fazem os experimentos acontecerem. Aqui nos EUA
já se segue a onda que veio da Europa de dar a eles contratos de trabalho e
pagar salários dignos desde a pós-graduação. E o Brasil está na lanterna.
Eu acho perfeitamente compreensível que os jovens
que começam a fazer iniciação científica estejam debandando. É o que eu vi
acontecer no meu laboratório e o que eu ouço de vários colegas.
Pergunta - Nas
redes sociais brasileiras têm crescido as piadas - e a rivalidade - entre
pessoas "de humanas", percebidas como mais à esquerda, menos
pragmáticas e mais preguiçosas e pessoas "de exatas", percebidas como
mais à direita, superficiais e elitistas. Como vê essa divisão? As áreas
estudadas realmente influenciam na orientação política e outras
características?
Resposta - "Pessoas disso"
ou "Pessoas daquilo" não existem. Existem pessoas, ponto. Estes são
estereótipos, que geralmente são nocivos.
Isso tem muito a ver com as expectativas que a
gente tem com relação a esses profissionais na sociedade. Se você espera que
alunos da área de Humanidades sejam esquerdistas, toda vez que conhecer um vai
dizer: "Ahá, tá vendo?". E quando aparecerem os alunos de Humanas
conservadores, você os ignora como "exceção".
É esse o problema dos estereótipos, eles criam o
que a gente chama de profecias autorrealizadas. Você cria uma expectativa com
base na percepção daquele estereótipo e você passa a distorcer sua visão de
mundo para que ela se encaixe nele.
No Facebook ficou fácil demais falar qualquer
besteira em público, e o Facebook é uma máquina de propagação de estereótipos.
Você dá "like" no que se encaixa com o que você pensa e ignora o
resto.
Mas isso tudo é besteira, conhecimento é
conhecimento. Se hoje a gente pode olhar ao redor e ver um mundo organizado em
que boa parte das pessoas não é apedrejada por seus ideais ou crenças, é tudo
graças ao conhecimento. Todo conhecimento é importante.
Fonte: Camilla Costa da BBC Brasil
Gaspar Moura dos Santos