Foto: folha/ Uol fotos de pessoas que já morreram
Para best-seller israelense,
pandemia nos fará redobrar os esforços para proteger e prolongar a vida
RESUMO Historiador israelense argumenta
que a pandemia, embora nos faça confrontar a fragilidade de cada um,
provavelmente não mudará a atitude humana moderna que vê no fim da vida não
mais uma decisão divina inevitável, mas sim um problema técnico que pode ser solucionado
pela ciência.
O mundo moderno foi
moldado pela ideia de que os humanos podem passar a perna na morte ou
derrotá-la. Foi uma atitude nova e revolucionária. Ao longo de quase toda a história, os humanos se sujeitaram à morte, sem
reclamar.
Até
o final da Idade Moderna, as religiões e as ideologias, em sua maioria,
encaravam a morte não como nosso destino inevitável, mas como a principal fonte
de sentido da vida. Os eventos mais importantes da existência humana só
ocorriam depois de a pessoa dar seu último suspiro. Só então ela
descobriria os verdadeiros segredos da vida. Só então ganharia a salvação
eterna ou seria condenada ao sofrimento perpétuo.
Em
um mundo sem morte —logo, sem céu, inferno ou reencarnação—, religiões como o
cristianismo, o islamismo e o hinduísmo não teriam feito sentido. Durante a
maior parte da história, as
melhores cabeças humanas se ocuparam não em tentar derrotar a morte, mas em tentar
entender seu sentido.
O
“Épico de Gilgamesh”, o mito de Orfeu e Eurídice, a Bíblia, o Alcorão, os Vedas
e incontáveis outros livros e relatos sagrados explicaram pacientemente aos
humanos angustiados que morremos porque Deus decretou assim —ou então o Cosmos
ou a Mãe Natureza —, e o melhor a fazer é aceitar esse destino com humildade e
graça.
Talvez algum dia Deus
abolisse a morte com um grande gesto metafísico, como o retorno de
Cristo à Terra. Contudo, orquestrar cataclismos desse tipo, evidentemente, era
algo que estava fora do alcance dos humanos de carne e osso.
Então,
veio a revolução científica. Para os cientistas, a morte
não é um decreto divino —é apenas um problema técnico. Os humanos
morrem não porque Deus decidiu que assim será, mas por causa de alguma falha
técnica. O coração parou de bombear sangue. O câncer destruiu o fígado. Vírus
se multiplicaram nos pulmões. E quem é o responsável por todos esses problemas
técnicos? Outros problemas técnicos.
O
coração para de bombear sangue porque o músculo cardíaco não recebeu oxigênio
suficiente. As células cancerosas se multiplicam no fígado devido a alguma
mutação genética aleatória. Vírus se instalaram nos meus pulmões porque alguém
espirrou no ônibus. Não há nada de metafísico nisso.
E
a ciência acredita que cada problema técnico tem uma solução técnica. Não
precisamos esperar o retorno de Cristo à Terra para superarmos a morte. Alguns
cientistas em um laboratório darão conta do recado. Enquanto tradicionalmente a
morte era a especialidade de padres e teólogos de batina preta, agora dela se ocupam
profissionais de laboratório vestidos de aventais brancos.
Foto: folha/ Uol Mortos
com coronavírus são sepultados em cemitério do Rio
Se
o coração bate irregularmente, podemos estimulá-lo com um marca-passo ou até
transplantar um novo órgão. Se o câncer devasta o corpo humano, podemos matá-lo
com radiação. Se vírus proliferam nos pulmões, podemos subjugá-los com algum
remédio novo.
É
verdade que, hoje, não somos capazes de resolver todos os problemas técnicos.
Trabalhamos, porém, para isso. As melhores mentes humanas não passam mais tempo
tentando identificar o sentido da morte. Em vez disso, estão ocupadas
prolongando a vida. Estão pesquisando os sistemas microbiológicos, fisiológicos
e genéticos responsáveis pela doença e pela velhice, desenvolvendo novos
medicamentos e tratamentos revolucionários.
Os humanos têm sido altamente bem-sucedidos em sua luta para prolongar a vida. Nos últimos dois séculos, a expectativa média de vida passou de menos de 40 anos para 72 anos em todo o mundo e para mais de 80 em alguns países desenvolvidos.
As
crianças, em especial, vêm conseguindo escapar das garras da morte. Até o
século 20, pelo menos um terço delas nunca chegava até a idade adulta. Morriam
rotineiramente de doenças infantis como disenteria, sarampo e varíola. Na
Inglaterra do século 17, cerca de 150 em cada 1.000 recém-nascidos morriam no
primeiro ano de vida, e apenas cerca de 700 crianças chegavam a completar 15
anos.
Hoje,
apenas 5 em cada 1.000 bebês ingleses morrem no primeiro ano de vida, e 993 chegam
a festejar seu aniversário de 15 anos. A mortalidade infantil no mundo todo
caiu para menos de 5%.
Temos
tido tanto êxito no esforço para proteger e prolongar a vida que nossa visão de
mundo mudou profundamente. Enquanto as religiões tradicionais encaravam a vida
após a morte como a principal fonte de sentido, a partir do século 18
ideologias como o liberalismo, o socialismo e o feminismo perderam qualquer
interesse pelo além-túmulo.
Foto: folha/ Uol Gripe Espanhola
O
que, exatamente, acontece a um comunista depois que ele ou ela morre? O que
acontece a um capitalista? O que acontece a uma feminista? Inútil procurar a
resposta nos escritos de Karl Marx,
Adam Smith ou Simone de Beauvoir.
A única ideologia moderna
que ainda confere um papel central à morte é o nacionalismo. Em seus
momentos mais poéticos e desesperados, promete a quem morrer pela nação a vida
eterna em sua memória coletiva. Essa promessa, porém, é tão imprecisa que nem
mesmo a maioria dos nacionalistas sabe como interpretá-la. Como alguém
realmente “vive” na memória? Se você está morto, como pode saber se as pessoas
se lembram de você ou não?
Alguém perguntou a Woody
Allen uma vez se ele esperava viver para sempre na memória dos
cinéfilos. Ele respondeu: “Eu preferiria viver para sempre no meu apartamento”.
Mesmo
muitas religiões tradicionais mudaram de foco. Em vez de prometer alguma
espécie de paraíso após a morte, começaram a dar ênfase muito maior ao que
podem fazer por nós nesta vida.
A
pandemia atual vai mudar as atitudes humanas em relação à morte? É provável que
não. Muito pelo contrário. O mais provável é que só
nos leve a redobrar nossos esforços para proteger vidas humanas, pois a reação
cultural dominante à Covid-19 não é a resignação —é uma mistura de indignação e
esperança.
Quando
uma epidemia acometia uma sociedade pré-moderna como a Europa medieval, as
pessoas naturalmente temiam por suas vidas e se sentiam devastadas com a morte
de seus entes queridos, mas a principal reação cultural era a resignação.
Os
psicólogos podem chamar isso de “desamparo aprendido”. As pessoas diziam a si mesmas
que essa era a vontade divina —ou, quem sabe, sinal de que Deus estava
castigando a humanidade por seus pecados. “Deus é quem sabe. Nós, humanos
perversos, merecemos o que está acontecendo. E você verá que tudo acabará bem
no final. Não se preocupe, as pessoas boas terão sua recompensa no céu. E não
perca tempo procurando um remédio. Esta doença foi enviada por Deus para nos
castigar. Quem pensa que nós, humanos, podemos superar esta epidemia com nossa
própria inteligência e inventividade está apenas acrescentando o pecado da
vaidade a seus outros erros. Quem somos nós para frustrar os planos de Deus?”