sábado, 2 de maio de 2020

Coronavírus não vai mudar a crença de que é possível vencer a morte, diz Harari

Foto: folha/ Uol  fotos de pessoas que já morreram

Para best-seller israelense, pandemia nos fará redobrar os esforços para proteger e prolongar a vida

RESUMO Historiador israelense argumenta que a pandemia, embora nos faça confrontar a fragilidade de cada um, provavelmente não mudará a atitude humana moderna que vê no fim da vida não mais uma decisão divina inevitável, mas sim um problema técnico que pode ser solucionado pela ciência.

O mundo moderno foi moldado pela ideia de que os humanos podem passar a perna na morte ou derrotá-la. Foi uma atitude nova e revolucionária. Ao longo de quase toda a história, os humanos se sujeitaram à morte, sem reclamar.

Até o final da Idade Moderna, as religiões e as ideologias, em sua maioria, encaravam a morte não como nosso destino inevitável, mas como a principal fonte de sentido da vida. Os eventos mais importantes da existência humana só ocorriam depois de a pessoa dar seu último suspiro. Só então ela descobriria os verdadeiros segredos da vida. Só então ganharia a salvação eterna ou seria condenada ao sofrimento perpétuo.

Em um mundo sem morte —logo, sem céu, inferno ou reencarnação—, religiões como o cristianismo, o islamismo e o hinduísmo não teriam feito sentido. Durante a maior parte da história, as melhores cabeças humanas se ocuparam não em tentar derrotar a morte, mas em tentar entender seu sentido.

O “Épico de Gilgamesh”, o mito de Orfeu e Eurídice, a Bíblia, o Alcorão, os Vedas e incontáveis outros livros e relatos sagrados explicaram pacientemente aos humanos angustiados que morremos porque Deus decretou assim —ou então o Cosmos ou a Mãe Natureza —, e o melhor a fazer é aceitar esse destino com humildade e graça.

Talvez algum dia Deus abolisse a morte com um grande gesto metafísico, como o retorno de Cristo à Terra. Contudo, orquestrar cataclismos desse tipo, evidentemente, era algo que estava fora do alcance dos humanos de carne e osso.

Então, veio a revolução científica. Para os cientistas, a morte não é um decreto divino —é apenas um problema técnico. Os humanos morrem não porque Deus decidiu que assim será, mas por causa de alguma falha técnica. O coração parou de bombear sangue. O câncer destruiu o fígado. Vírus se multiplicaram nos pulmões. E quem é o responsável por todos esses problemas técnicos? Outros problemas técnicos.

O coração para de bombear sangue porque o músculo cardíaco não recebeu oxigênio suficiente. As células cancerosas se multiplicam no fígado devido a alguma mutação genética aleatória. Vírus se instalaram nos meus pulmões porque alguém espirrou no ônibus. Não há nada de metafísico nisso.

E a ciência acredita que cada problema técnico tem uma solução técnica. Não precisamos esperar o retorno de Cristo à Terra para superarmos a morte. Alguns cientistas em um laboratório darão conta do recado. Enquanto tradicionalmente a morte era a especialidade de padres e teólogos de batina preta, agora dela se ocupam profissionais de laboratório vestidos de aventais brancos.

Se o coração bate irregularmente, podemos estimulá-lo com um marca-passo ou até transplantar um novo órgão. Se o câncer devasta o corpo humano, podemos matá-lo com radiação. Se vírus proliferam nos pulmões, podemos subjugá-los com algum remédio novo.
É verdade que, hoje, não somos capazes de resolver todos os problemas técnicos. Trabalhamos, porém, para isso. As melhores mentes humanas não passam mais tempo tentando identificar o sentido da morte. Em vez disso, estão ocupadas prolongando a vida. Estão pesquisando os sistemas microbiológicos, fisiológicos e genéticos responsáveis pela doença e pela velhice, desenvolvendo novos medicamentos e tratamentos revolucionários.

Os humanos têm sido altamente bem-sucedidos em sua luta para prolongar a vida. Nos últimos dois séculos, a expectativa média de vida passou de menos de 40 anos para 72 anos em todo o mundo e para mais de 80 em alguns países desenvolvidos.
As crianças, em especial, vêm conseguindo escapar das garras da morte. Até o século 20, pelo menos um terço delas nunca chegava até a idade adulta. Morriam rotineiramente de doenças infantis como disenteria, sarampo e varíola. Na Inglaterra do século 17, cerca de 150 em cada 1.000 recém-nascidos morriam no primeiro ano de vida, e apenas cerca de 700 crianças chegavam a completar 15 anos.

Hoje, apenas 5 em cada 1.000 bebês ingleses morrem no primeiro ano de vida, e 993 chegam a festejar seu aniversário de 15 anos. A mortalidade infantil no mundo todo caiu para menos de 5%.
Temos tido tanto êxito no esforço para proteger e prolongar a vida que nossa visão de mundo mudou profundamente. Enquanto as religiões tradicionais encaravam a vida após a morte como a principal fonte de sentido, a partir do século 18 ideologias como o liberalismo, o socialismo e o feminismo perderam qualquer interesse pelo além-túmulo.

Foto: folha/ Uol  Gripe Espanhola

O que, exatamente, acontece a um comunista depois que ele ou ela morre? O que acontece a um capitalista? O que acontece a uma feminista? Inútil procurar a resposta nos escritos de Karl Marx, Adam Smith ou Simone de Beauvoir.

A única ideologia moderna que ainda confere um papel central à morte é o nacionalismo. Em seus momentos mais poéticos e desesperados, promete a quem morrer pela nação a vida eterna em sua memória coletiva. Essa promessa, porém, é tão imprecisa que nem mesmo a maioria dos nacionalistas sabe como interpretá-la. Como alguém realmente “vive” na memória? Se você está morto, como pode saber se as pessoas se lembram de você ou não?
Alguém perguntou a Woody Allen uma vez se ele esperava viver para sempre na memória dos cinéfilos. Ele respondeu: “Eu preferiria viver para sempre no meu apartamento”.

Mesmo muitas religiões tradicionais mudaram de foco. Em vez de prometer alguma espécie de paraíso após a morte, começaram a dar ênfase muito maior ao que podem fazer por nós nesta vida.
A pandemia atual vai mudar as atitudes humanas em relação à morte? É provável que não. Muito pelo contrário. O mais provável é que só nos leve a redobrar nossos esforços para proteger vidas humanas, pois a reação cultural dominante à Covid-19 não é a resignação —é uma mistura de indignação e esperança.

Quando uma epidemia acometia uma sociedade pré-moderna como a Europa medieval, as pessoas naturalmente temiam por suas vidas e se sentiam devastadas com a morte de seus entes queridos, mas a principal reação cultural era a resignação.

Os psicólogos podem chamar isso de “desamparo aprendido”. As pessoas diziam a si mesmas que essa era a vontade divina —ou, quem sabe, sinal de que Deus estava castigando a humanidade por seus pecados. “Deus é quem sabe. Nós, humanos perversos, merecemos o que está acontecendo. E você verá que tudo acabará bem no final. Não se preocupe, as pessoas boas terão sua recompensa no céu. E não perca tempo procurando um remédio. Esta doença foi enviada por Deus para nos castigar. Quem pensa que nós, humanos, podemos superar esta epidemia com nossa própria inteligência e inventividade está apenas acrescentando o pecado da vaidade a seus outros erros. Quem somos nós para frustrar os planos de Deus?”