O vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro da Casa Civil, o general
Walter Braga Netto, durante solenidade de lançamento do Programa Abrace o
Marajó, no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 3 de março. Foto: Mateus
Bonomi/Agif/Folhapress
As Forças Armadas brasileiras enfrentam um
dilema que talvez seja o maior de sua história. Se continuarem apoiando o
governo Bolsonaro, desequilibram ainda mais o pilar democrático das relações
civis-militares e caem em descrédito por se tornarem cúmplices de uma
presidência vil, que está levando o país rumo ao caos infinito.
Se desembarcarem do governo e apoiarem o afastamento do presidente, rompem com
seu papel constitucional e reforçam o erro histórico de se intrometerem na
política nacional.
Não conformados à subordinação ao poder civil
prevista na Constituição, nossos militares se percebem historicamente como
moderadores da política. Desde 2018, tanto o corporativismo militar quanto o
desejo de ganhos pessoais direcionaram a caserna para um ativismo político sem
precedentes desde a redemocratização.
Essa insubordinação ao poder civil teve na criação
da Comissão Nacional da Verdade, em 2012, sob a gestão de Dilma Rousseff, suas
primeiras manifestações. Mas foi o já famoso tuíte do general Villas Bôas,
então comandante do Exército, ameaçando o STF, em 2018, no governo de Michel
Temer, que estimulou a caserna a sair do armário constitucional e constranger
os demais poderes políticos – fato que, por si só, contribuiu para a eleição de
Bolsonaro e Mourão.
Na composição e condução do seu governo, Bolsonaro
criou um padrão peculiar no pilar republicano das relações civis-militares:
criar reservas de mercado para a caserna como forma de garantir o apoio das
Forças Armadas a sua gestão.
Os exemplos são fartos: o aparelhamento de
militares em cargos de indicação política no governo Bolsonaro é o maior da
história; a criação das escolas cívico-militares; a intenção de contratar
militares da reserva para uma força-tarefa no INSS; a reformulação de carreira,
que privilegiou os já privilegiados altos oficiais; a saída de civis no
Ministério da Defesa, com a presença de um militar como ministro e a ocupação
de cargos supostamente destinados a civis por militares da reserva. Cada um
desses pontos contribuiu para uma rápida deterioração das relações
civis-militares, considerada um dos pilares de qualquer regime democrático.
Ainda que tenha falhado a estratégia do generalato
de domar o governo Bolsonaro, algo cada vez mais evidente, em especial após o
fracasso de conterem a demissão do diretor da Polícia Federal Maurício Valeixo,
a família presidencial sabe que o empoderamento político da caserna é para
valer e que qualquer insubordinação generalizada seria letal para a gestão
Bolsonaro. Daí seu interesse em ocupar politicamente os militares – e
remunerá-los bem por isso. O arranjo era magistral: agradava-se
individualmente, pelo aumento de rendimentos pessoais; agradava-se
institucionalmente, pela tentativa de reescrever a história da ditadura; e
agradava-se populisticamente, passando uma falsa imagem de ordens social e
moral.
No entanto, o aumento da insatisfação popular do
presidente por suas atitudes negacionistas sobre o coronavírus e a renúncia
bombástica de Sergio Moro já movimentam parte dos militares em direção a um
possível governo do vice Hamilton Mourão. O que alguns veem como a salvação da
República pode ser um aprofundamento do dilema democrático. O problema é que,
ao se tornarem fiadores da permanência ou não de Bolsonaro na presidência, as
Forças Armadas deixam clara sua atuação política, reforçando a
inconstitucionalidade de seu autogerado poder moderador.
Não cabe aos militares constitucionalmente
definirem o destino de qualquer governo, tampouco é desejável que o façam, pelo
princípio de subordinação democrática dos militares ao poder civil. É esse
princípio que garante que as Forças Armadas não intervirão na política quando
discordarem do governo de plantão, devendo obedecer ao comandante-em-chefe
escolhido democraticamente pelas eleições.
Ao abraçarem o governo Bolsonaro e se assumirem
como atores políticos, os militares deram um tiro no próprio pé, criando um
dilema de difícil solução. Se se mantêm em silêncio e no governo, é sinal que a
estratégia das reservas de mercado do presidente surtiu efeito para manter o
apoio das Forças à sua gestão. Isso, no entanto, arranhará por gerações a
imagem institucional que queriam consertar por vias tortas. Se ensaiarem uma
nova insubordinação ao comandante-em-chefe, interferirão novamente na condução
da política nacional, extrapolando seu papel constitucional.
Ambas estratégias desequilibram o pilar democrático
das relações civis-militares e causam danos e implicações de longo prazo para o
regime democrático e para a vida de gerações de brasileiros. Uma participação
maior das Forças Armadas no poder pode significar ameaças aos direitos civis:
controle social autoritário, uso de força letal em policiamentos, acesso do governo
a dados sigilosos via serviços de inteligência não democráticos, militarização
do ensino e da justiça, etc.
Enquanto o governo Bolsonaro agoniza e se acirram
seus disparates antidemocráticos, mais afundados na lama política ficam os
militares. Sair desse dilema e entender o seu verdadeiro papel no Estado
Democrático de Direito talvez seja o maior desafio da história das Forças
Armadas brasileiras. Será que aprenderão a lição? A ver como se portarão no
alvorecer do governo de Hamilton Mourão.
Fonte: Lucas Rezende/TI Brasil