domingo, 26 de abril de 2020

O dilema dos militares com Bolsonaro: ou viram cúmplices ou rasgam a Constituição


O vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro da Casa Civil, o general Walter Braga Netto, durante solenidade de lançamento do Programa Abrace o Marajó, no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 3 de março. Foto: Mateus Bonomi/Agif/Folhapress
As Forças Armadas brasileiras enfrentam um dilema que talvez seja o maior de sua história. Se continuarem apoiando o governo Bolsonaro, desequilibram ainda mais o pilar democrático das relações civis-militares e caem em descrédito por se tornarem cúmplices de uma presidência vil, que está levando o país rumo ao caos infinito. Se desembarcarem do governo e apoiarem o afastamento do presidente, rompem com seu papel constitucional e reforçam o erro histórico de se intrometerem na política nacional.

Não conformados à subordinação ao poder civil prevista na Constituição, nossos militares se percebem historicamente como moderadores da política. Desde 2018, tanto o corporativismo militar quanto o desejo de ganhos pessoais direcionaram a caserna para um ativismo político sem precedentes desde a redemocratização.

Essa insubordinação ao poder civil teve na criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012, sob a gestão de Dilma Rousseff, suas primeiras manifestações. Mas foi o já famoso tuíte do general Villas Bôas, então comandante do Exército, ameaçando o STF, em 2018, no governo de Michel Temer, que estimulou a caserna a sair do armário constitucional e constranger os demais poderes políticos – fato que, por si só, contribuiu para a eleição de Bolsonaro e Mourão.

Na composição e condução do seu governo, Bolsonaro criou um padrão peculiar no pilar republicano das relações civis-militares: criar reservas de mercado para a caserna como forma de garantir o apoio das Forças Armadas a sua gestão.

Os exemplos são fartos: o aparelhamento de militares em cargos de indicação política no governo Bolsonaro é o maior da história; a criação das escolas cívico-militares; a intenção de contratar militares da reserva para uma força-tarefa no INSS; a reformulação de carreira, que privilegiou os já privilegiados altos oficiais; a saída de civis no Ministério da Defesa, com a presença de um militar como ministro e a ocupação de cargos supostamente destinados a civis por militares da reserva. Cada um desses pontos contribuiu para uma rápida deterioração das relações civis-militares, considerada um dos pilares de qualquer regime democrático.

Ainda que tenha falhado a estratégia do generalato de domar o governo Bolsonaro, algo cada vez mais evidente, em especial após o fracasso de conterem a demissão do diretor da Polícia Federal Maurício Valeixo, a família presidencial sabe que o empoderamento político da caserna é para valer e que qualquer insubordinação generalizada seria letal para a gestão Bolsonaro. Daí seu interesse em ocupar politicamente os militares – e remunerá-los bem por isso. O arranjo era magistral: agradava-se individualmente, pelo aumento de rendimentos pessoais; agradava-se institucionalmente, pela tentativa de reescrever a história da ditadura; e agradava-se populisticamente, passando uma falsa imagem de ordens social e moral.

No entanto, o aumento da insatisfação popular do presidente por suas atitudes negacionistas sobre o coronavírus e a renúncia bombástica de Sergio Moro já movimentam parte dos militares em direção a um possível governo do vice Hamilton Mourão. O que alguns veem como a salvação da República pode ser um aprofundamento do dilema democrático. O problema é que, ao se tornarem fiadores da permanência ou não de Bolsonaro na presidência, as Forças Armadas deixam clara sua atuação política, reforçando a inconstitucionalidade de seu autogerado poder moderador.

Não cabe aos militares constitucionalmente definirem o destino de qualquer governo, tampouco é desejável que o façam, pelo princípio de subordinação democrática dos militares ao poder civil. É esse princípio que garante que as Forças Armadas não intervirão na política quando discordarem do governo de plantão, devendo obedecer ao comandante-em-chefe escolhido democraticamente pelas eleições.

Ao abraçarem o governo Bolsonaro e se assumirem como atores políticos, os militares deram um tiro no próprio pé, criando um dilema de difícil solução. Se se mantêm em silêncio e no governo, é sinal que a estratégia das reservas de mercado do presidente surtiu efeito para manter o apoio das Forças à sua gestão. Isso, no entanto, arranhará por gerações a imagem institucional que queriam consertar por vias tortas. Se ensaiarem uma nova insubordinação ao comandante-em-chefe, interferirão novamente na condução da política nacional, extrapolando seu papel constitucional.

Ambas estratégias desequilibram o pilar democrático das relações civis-militares e causam danos e implicações de longo prazo para o regime democrático e para a vida de gerações de brasileiros. Uma participação maior das Forças Armadas no poder pode significar ameaças aos direitos civis: controle social autoritário, uso de força letal em policiamentos, acesso do governo a dados sigilosos via serviços de inteligência não democráticos, militarização do ensino e da justiça, etc.

Enquanto o governo Bolsonaro agoniza e se acirram seus disparates antidemocráticos, mais afundados na lama política ficam os militares. Sair desse dilema e entender o seu verdadeiro papel no Estado Democrático de Direito talvez seja o maior desafio da história das Forças Armadas brasileiras. Será que aprenderão a lição? A ver como se portarão no alvorecer do governo de Hamilton Mourão.

Fonte: Lucas Rezende/TI Brasil