Por: Thais Lazzeri
Máscaras improvisadas de ‘proteção’ usadas nos hospitais municipais Valdomiro de Paula, em Itaquera, e Alexandre Zaio, na Vila Nhocuné.
Foto: Divulgação/Sindesp
A ENFERMEIRA e servidora municipal Juliana* atendeu o
telefone ofegante. Fumante que sobreviveu a dois AVCs, ela havia usado o
período da manhã para buscar doações de máscaras para dividir com a equipe de
trabalho – os profissionais de saúde que lidam com pacientes entubados por
covid-19 em um hospital público da cidade de São Paulo.
Ainda esta semana, ela me disse, deve chegar outra
doação, desta vez de aventais cirúrgicos para colegas que ainda não foram
afastados – muitos já estão fora de combate por terem sido contaminados pelo
coronavírus ou terem crises de ansiedade. A preocupação é ainda maior porque,
desde o início da pandemia, nem ela nem os colegas foram testados.
O relato de Juliana tem três denúncias graves. Por
ser parte do grupo de risco, ela deveria ter prioridade nos testes, como preconiza o Ministério da
Saúde. Mas os testes, escassos, são
destinados a pacientes graves. Também deveria ter sido realocada para outro
setor ou afastada, mas isso não aconteceu. “Tentaram por dois dias, mas não
tinha quem me substituísse”. Ela voltou – e sem equipamento de proteção
individual.
Juliana é uma dos mais de 627 servidores municipais
da maior capital do país que responderam, em condição de anonimato, uma
pesquisa feita com exclusividade. Em
pleno epicentro da doença, cerca de 62% dos profissionais afirmaram não ter
máscaras de uso hospitalar (N95); 52% não têm máscara cirúrgica; 70%, álcool
70; e 30%, avental. Disponibilizar equipamentos de segurança não é opcional, mas um direito
do trabalhador e uma
obrigação do empregador. Quase um terço dos profissionais afirmou ter 60 anos
ou mais – ou seja, também pertence ao grupo de risco.
‘Você tem profissional
trabalhando com capa de chuva ou saco de lixo tamanho o desespero.’
O objetivo da pesquisa, realizada pelo Sindicato
dos Servidores Municipais de São Paulo, o Sindesp, era mapear as condições de
segurança de trabalho e os riscos de contaminação entre os servidores do grupo
de risco para a covid-19. “Você tem profissional trabalhando com capa de chuva
ou saco de lixo tamanho o desespero. Não está tudo em ordem e a população vai
sentir isso na carne, porque também vai ficar mais exposta”, diz Sergio
Antiqueira, presidente do Sindsep.
“Eu recebi uma máscara N95 com a indicação de usar
por um mês, e não por seis horas, como recomenda o Organização Mundial da Saúde
para os que estão cuidado de pacientes com covid-19”, me disse Juliana.
Entidades como o Sinsesp vêm
contabilizando o número de trabalhadores infectados: segundo outro levantamento
do sindicato, o índice de infecção por covid-19
entre os profissionais da saúde é 16 maior que o da população da capital.
acredita
Em março, a Organização Mundial da Saúde manifestou preocupação com a falta de
equipamentos individuais para os profissionais de saúde. A entidade previu um aumento de 40% no uso desses
equipamentos. “Sem cadeias de suprimento seguras, o risco para os trabalhadores
da saúde em todo mundo é real. A indústria e os governos devem agir rapidamente
para aumentar a oferta, aliviar as restrições à exportação e adotar medidas
para deter a especulação e o acúmulo em estoques. Não podemos deter a covid-19 sem proteger primeiro os
trabalhadores da saúde”, disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom
Ghebreyesus.
Capas de chuva são usadas como equipamento de proteção no
Hospital Municipal Tide Setúbal, em São Miguel Paulista, referência para
atendimento de casos de covid-19 na zona leste de SP.
Foto: Divulgação/Sindesp
‘Se
eu morrer vai ser homicídio culposo ou doloso?’
São Paulo concentra o maior número de casos da
doença no Brasil: 6.708 pessoas testaram positivo e 428 já morreram. Entre a
primeira e a segunda semana de março, o aumento de pedidos de afastamento entre servidores municipais da saúde
cresceu 57% – e
nessa conta não entram nem os trabalhadores de organizações sociais nem os de
terceirizadas.
Vivian*, servidora do setor administrativo, foi uma
das que conseguiu ser afastada por 14 dias depois de tentar trabalhar de casa –
o que foi negado –, e pedir afastamento. Obesa, diabética e hipertensa, ela
trabalha entre os médicos e enfermeiros que atendem pacientes com coronavírus dentro de um hospital
municipal. “O secretário municipal de Saúde Edson Aparecido dos Santos e o
prefeito Bruno Covas pedem para que as pessoas no grupo de risco façam
isolamento, mas a regra não vale para os próprios funcionários”, ela me disse.
‘Trabalho com vítimas
contaminadas sem EPIs “equivale à prática de dirigir embriagado ou de olhos
vendados”‘.
A servidora também está entre os 55,7% que
respondeu à pesquisa de segurança do trabalho afirmando ter um colega afastado
por suspeita de coronavírus ou
confirmado. “Na semana passada duas amigas acharam que tinham se contaminado, e
até hoje não testaram elas. Nunca vou esquecer a maneira como me olharam
naquele dia”.
O atestado, ela diz, tira todos os direitos
trabalhistas, uma vez que a pessoa passa a receber o salário-base. No caso
Vivian, que acumula mais de duas décadas como servidora, seu rendimento é de R$
1.400. “Ou peço demissão ou sou exonerada. Para mim, nenhuma das opções
funciona, porque eu não tenho como sobreviver. Eu amo meu trabalho, mas não
posso ir trabalhar chorando todo dia achando que vou morrer, porque eu não
quero morrer”. E continua: “Se eu morrer vai ser homicídio culposo ou doloso?
Porque eu estou sendo empurrada para a morte.”
Sacos de lixo e roupa seja são improvisados como aventais
pelos profissionais de saúde do Hospital Dr. Arthur Ribeiro de Saboya, no
Jabaquara, zona sul. Foto: Divulgação/Sindesp
O Sindicato dos Enfermeiros do Estado de São Paulo
entrou com uma ação civil pública para obrigar o estado de São Paulo a fornecer
os equipamentos de proteção. Na terça-feira, a juíza Alexandra Fuchs de Araujo
afirmou em uma liminar que o empregador que desrespeita a legislação e não
fornece os equipamentos de proteção aos funcionários pode ser advertido e
multado. Na decisão, disse ainda que o estado conhece as consequências do não
fornecimento de EPIs e que, diante da crise, os enfermeiros do grupo de risco
devem ser preservados porque o trabalho com vítimas contaminadas sem EPIs
“equivale à prática de dirigir embriagado ou de olhos vendados”. “O Estado que
exige isto do servidor não pode exigir do servidor, por outro lado, que
permaneça no trabalho. Seria o mesmo que exigir de um ser humano que permaneça
na frente de um carro enquanto o condutor está com vendas nos olhos,
submetendo-se voluntariamente ao muito provável resultado morte. Não é uma
conduta exigível, do ponto de vista ético”, escreveu a juíza.
Na liminar, ela deu ao governo estadual o prazo de
cinco dias para afastamento dos profissionais enfermeiros que pertençam a grupo
de risco e que estejam sem acesso ao material de proteção. Se não foram
realocados para função com baixo risco de contato no prazo até o fim da
pandemia, ela afirmou que os profissionais podem “se afastar sem nenhum risco
de processo administrativo ou suspensão de remuneração”. No mesmo período, o
estado deve fornecer informações sobre o fornecimento de material hospitalar de
proteção.
Segundo a Secretaria de Saúde de São Paulo, no
último mês, o consumo de máscaras cirúrgicas passou de 75 mil para mais de 280
mil máscaras. Só o uso do modelo N95 subiu de cerca 3,7 mil para 12 mil. A
prefeitura afirmou que adquiriu 2,9 milhões de máscaras cirúrgicas e 500 mil
unidades do modelo N95, que que serão entregues gradativamente até o final do
mês de abril. Também afirmou que aguarda máscaras e macacões importados da
China, em uma ação intermediada pelo prefeito Bruno Covas.
A reportagem contatou também o Conselho Regional de
Enfermagem de São Paulo, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
*A pedido dos profissionais de saúde entrevistados para esta reportagem,
a identidade de todos foi mantida em sigilo.
Fonte:
TI Brasil