Getty Images Crime é muito
difícil de provar - e não só no Brasil
O principal ponto de controvérsia em julgamentos
importantes de corrupção, como do mensalão e aquele que confirmou a condenação
do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na última quarta-feira, é a
necessidade ou não de provas diretas sobre o suposto recebimento de propina por
um agente público e o uso do cargo para beneficiar quem fez o pagamento.
Corrupção, por natureza, é um crime que se mantém
nas sombras. E, quanto mais alta a posição ocupada pela pessoa julgada, menores
são as chances de que deixe rastros óbvios dos crimes cometidos. Por isso, um
conjunto de provas, que incluem delações e relatos de testemunhas, acaba sendo
usado para juntar as peças do quebra-cabeça.
E essa dificuldade em comprovar casos de corrupção
não é exclusividade brasileira. Segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil,
encontrar provas diretas de propina, especialmente quando há políticos e
empresários poderosos envolvidos, é um "desafio global".
Os mais críticos, contudo, afirmam que
interpretações baseadas em evidências indiretas podem ferir a presunção de
inocência e trazer riscos ao devido processo legal.
"Parte da dificuldade de análise acadêmica e
também jurídica é justamente a coleta de dados. No caso da corrupção, o desafio
é coletar evidências de links causais do tipo A pagou B que passou para C que,
por sua vez, se beneficiou de algo", observa o pesquisador brasileiro
Armando Martins de Castro, da universidade britânica London School of Economics
(LSE),
Enquanto pesquisadores normalmente usam medidas que
se baseiam na percepção da corrupção ou experimentos para medir níveis de
tolerância ou como as pessoas se comportam em determinadas situações,
policiais, procuradores e juízes têm se fiado cada vez mais no relato de
colaboradores para tentar coletar indícios.
Getty Images 'Nenhum
político inteligente que pratique corrupção permitiria deixar provas óbvias do
crime', diz professor americano
Rede
complexa de corrupção
O professor Alamiro Velludo Salvador Netto, do
Departamento de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), destaca que
as práticas de corrupção ganharam sofisticação ao longo do tempo.
Grandes corporações, com divisão de tarefas
internas, passaram a adotar práticas corruptas, inclusive com ramificações no
exterior, aponta ele.
"Hoje o fenômeno da corrupção não é só aquele
do particular com o funcionário público, com uma repartição clara de
benefícios. Temos grandes empresas com divisão de tarefas. E, na medida em que
essas empresas são grandes, há também uma infiltração internacional",
destaca.
"É muito diferente do pagamento ao guarda de
trânsito. A corrupção envolve, às vezes, compras internacionais, obras
internacionais, e tudo isso leva a uma dificuldade maior na identificação dos
atores."
O pesquisador Martins Castro, da London School of
Economics, destaca que esquemas "mais sofisticados de corrupção têm
intermediários, que usam offshore (empresa ou conta aberta em um território com
menor tributação) e contas secretas para receber e fazer pagamentos", o
que dificulta identificar os reais beneficiários do dinheiro e os mandantes.
"Se não tiver um colaborador ou um
denunciante, fica quase impossível rastrear empresas de fachada usadas
normalmente para fazer transferências em poucas horas e em jurisdições onde não
há obrigatoriedade de se revelar quem são os titulares das contas ou o dono do
dinheiro", completa o pesquisador, que também leciona no departamento de
administração da LSE.
'Nenhum
político inteligente deixa rastro'
Para Matthew M. Taylor, professor de política da
American University, em Washington, em "lugar nenhum do mundo é fácil
comprovar corrupção entre autoridades graduadas".
"Nenhum político inteligente que pratique
corrupção permitiria deixar rastros claros do crime," diz Taylor, também
pesquisador do Woodrow Wilson Centre, na capital americana.
Por isso, alguns tribunais deixaram de exigir a
existência comprovada de um "ato de ofício" concreto por parte do
agente público em troca da vantagem indevida que recebeu.
O ex-presidente participou de
protesto em Mariana (MG) onde houve desastre ambiental | Foto: Ricardo
Stuckert/Instituto Lula
Isso aconteceu no julgamento do mensalão, em 2012,
quando o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou o entendimento de que a oferta da
vantagem e o aceite por parte do funcionário público já caracterizam o crime de
corrupção.
Taylor defende que, na falta de uma prova que
aponte um "link direto", é possível justificar uma condenação a
partir da existência de uma "preponderância" de evidências que
apontem para o crime de corrupção.
"É importante compreender que os julgamentos
de casos de corrupção, muitas vezes, precisam se fiar numa preponderância de
evidências. Não há, normalmente, um quid pro co, uma clara troca de um
benefício por outro, mas sim evidências que, juntas, apontam para a ocorrência
do crime", diz.
Para o professor Alamiro Velludo Salvador Netto, da
USP, no caso do Brasil, seria necessária uma mudança no Código Penal brasileiro
para permitir condenações sem a comprovação de um ato concreto do agente
público direcionado a retribuir a propina.
"Esse tipo de construção demanda uma alteração
legislativa. No caso brasileiro, temos dificuldade em fazer isso, porque os
dispositivos que tratam de corrupção fazem referência direta aos atos de
ofício", diz o especialista em Direito Penal, que discorda da
interpretação atual do Supremo.
"Outros países já superaram isso na
legislação. Compete ao Parlamento rever se, para tornar efetivo o combate da
corrupção, é adequado ou não suprimir o ato de ofício ao condenar",
defende.
Ocultação do
dinheiro
Outro argumento usado pela defesa do ex-presidente
Lula no processo em que foi condenado é o de que o Ministério Público não foi
capaz de identificar o chamado "caminho do dinheiro", ou seja, a
relação entre o dinheiro usado pela OAS para as reformas do tríplex e recursos
desviados de contratos da Petrobras.
Essa dificuldade em especificar claramente o
"trajeto" e origem dos recursos usados em trocas de propina existe em
grande parte das investigações de esquemas de corrupção no Brasil e no mundo,
apontam os especialistas.
Getty Images Para pesquisador da
LSE, o problema começa quando são definidos critérios distintos para definir o
que é corrupção ou não
Sem citar o caso do ex-presidente, Martins de Castro,
da London School of Economics, explica que dificilmente dinheiro da corrupção
aparece como tal na contabilidade das empresas.
"O dinheiro da corrupção normalmente não é
colocado em balanço de empresa. Algumas empresas da Lava Jato, por exemplo, afirmaram
que pagavam propina por meio de consultorias", diz o pesquisador, que se
dedica a pesquisar corrupção, com foco nas empresas, mas sempre observando a
interação do mundo privado com o público.
Além disso, ressalta ele, assumir o envolvimento
com casos de corrupção compromete a imagem das empresas e assusta acionistas.
Isso seria mais um motivo para manter oculta ou tentar dar fachada legal a
transações ilícitas.
O uso de
delações como meio de prova
Na Lava Jato, a atuação do Ministério Publico e do Judiciário
também tem sido alvo de polêmicas pelo amplo uso de delações de investigados
interessados em reduzir as próprias penas.
O ex-procurador italiano Raffaele Cantone, que
atuou na investigação da máfia Camorra, destaca que, no crime de corrupção, normalmente
não há "conflito de interesses" entre os criminosos envolvidos.
Portanto, as provas costumam ser eficientemente ocultadas, o que torna o
mecanismo da delação essencial para a investigação, segundo ele.
"A descoberta da corrupção só surge através
desses mecanismos (de colaboração), porque, por sua natureza, não há conflito
de interesses que possa tornar esse crime público", diz Cantone, que é
atualmente presidente da Autoridade Nacional Anticorrupção da Itália, órgão
administrativo responsável pela supervisão das medidas de prevenção.
"A corrupção é baseada na omertà (o
silêncio cúmplice típico da máfia). Se não criarmos uma vantagem para quem
optar por colaborar, enviamos a mensagem ao corrupto de que vale à pena tentar.
Como ganhamos da máfia na Itália? Através do sistema de colaborações. Os
criminosos passaram a não se sentir mais invencíveis. É uma escolha utilitária,
mas fundamental."
Operação Lava Jato atrai defesas
(como a da foto), mas também críticas | Foto: Marcello Casal Jr./Ag. Brasil
É possível
confiar no delator?
O professor de Direito Penal da USP Alamiro Velludo
Salvador Netto também destaca o caráter "secreto" do crime de corrupção.
"Na medida em que eu não tenho uma vítima
concreta, todas as pessoas que participam do delito estabelecem uma lógica
comum de ocultá-lo."
As delações, portanto, servem como instrumento para
estimular a quebra desse "contrato de sigilo". Mas, para Netto, a
colaboração de suspeitos só serve como ponto de partida para as investigação e
para facilitar a obtenção de provas, não para embasar condenações.
"Não nego que é um meio de obtenção de prova
útil. O problema é saber até que ponto a palavra do delator tem força. Ele vai
receber benefícios na exata medida da informação que der. Então, no afã da
obtenção de maiores benefícios, ele vai tentar falar tudo o que sabe e talvez
até o que não sabe", argumenta.
Salvador Netto defende ainda que as delações sejam
oferecidas de forma estratégica, com a finalidade de penalizar os chefes das
organizações criminosas. Para ele, a possibilidade de firmar delações está
sendo oferecida de forma indiscriminada no âmbito da operação Lava Jato.
"Vejo que as colaborações são oferecidas para
um número indistinto de pessoas. Às vezes, as mesmas operações têm diversos
colaboradores. Não se sabe nem mais quem é réu e quem é colaborador. E os
benefícios oferecidos ultrapassam os previstos na lei."
Provas no
caso Lula
No caso do julgamento de Lula, a defesa do
ex-presidente argumentou que o Ministério Público baseou as acusações em
delações de colaboradores, principalmente de ex-executivos da construtora OAS.
O petista é acusado de receber, a título de
propina, um apartamento tríplex no Guarujá. Em troca, teria atuado para
beneficiar a OAS em contratos com a Petrobras.
Para o professor Taylor, da American University, os
desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que condenaram Lula
a 12 anos e um mês de prisão, se dedicaram em demonstrar que basearam a decisão
em um conjunto variado de evidências que se complementam e que incluem provas
documentais, relato de testemunhas e delações.
"Não há um quid pro quo, uma troca
clara de um benefício específico pelo apartamento. Mas o tribunal procurou
responder a isso mostrando que havia uma preponderância de evidências de
diferentes fontes, incluindo documentos relacionados ao apartamento e a
nomeação de diretores da Petrobras", diz o pesquisador, que é autor de três
livros sobre corrupção, sistema judicial e política brasileira.
O professor Leonardo Avritzer, da Universidade
Federal de Minas Gerais, salienta que a coleta de evidências relacionadas a
crimes de corrupção tende a ser mais complexa, justamente pela natureza oculta
das transações.
"Em diversos casos você não tem a prova
material, mas o conjunto probatório aponta para uma mesma direção", avalia
o professor, que pesquisa e já organizou livros sobre corrupção.
Na avaliação de Avrizter, contudo, isso não aconteceu
no caso do ex-presidente. Ao contrário do que pensa Taylor, para o professor da
UFMG "não existe um conjunto probatório para uma direção" que aponte
que o tríplex foi entregue a Lula e reformado para atender a exigências dele
como pagamento de propina.
Novas
discussões
Na avaliação de Martins de Castro, a Lava Jato em
alguns casos tem adotado determinados posicionamentos similares ao chamado
"direito comum", ou "common law", que teve origem na
Inglaterra.
No direito inglês, um juiz se baseia na jurisprudência,
ou seja, em interpretações de decisões anteriores, e em costumes comuns. As
decisões são tomadas por um juiz por meio da troca de argumentos e provas
apresentados por defesa e acusação, sem a necessidade de ter normas
pré-definidas escritas.
O sistema jurídico adotado pelo Brasil é diferente.
Chamado de "civil law", segue leis e uma série de códigos e regras
escritas. Assim, o que não está especificado no texto não pode ser tido como
ilegal.
No caso de corrupção, o Código Penal brasileiro
tem, segundo especialistas, uma descrição restrita. Pelo texto da lei,
limita-se na forma passiva a solicitar ou receber, para si ou para outrem,
direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem indevida. E, na forma
ativa, oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público.
"Julgamentos como o do Lula abrem caminho para
novas discussões tanto no Legislativo quanto no Supremo sobre a forma como se
segue e interpreta as leis no país", afirma Martins de Castro, dizendo que
ao aplicar elementos do "common law" em países como o Brasil pode
gerar insegurança jurídica.
Fonte: BBC Brasil