quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Como lidar com moralidade e desejo – Psicologia da Religião



Talvez cause estranheza para você eu ser um cientista da religião. A formação em ciência da religião aqui no Brasil é pouquíssimo conhecida e, na verdade, encontramos poucos centros de formação (me formei na UFJF). Em outros países, como a Alemanha, a Religionswissenschaft, Ciência da Religião, é mais comum e mais compreendida.
Antes de responder à pergunta que recebi no Sarahah – como lidar com moralidade e desejo – gostaria de esclarecer, para evitar confusões, sobre a perspectiva que utilizarei.

Psicologia da Religião
A religião é um fenômeno que aparece em todas as culturas. Como psicólogos, estudamos o comportamento, o pensamento, o sentimento (além de muito mais). Se o nosso objeto de estudo é então o comportamento interno e externo do ser humano, não faz sentido excluir uma área tão presente na vida de bilhões de pessoas como a religião, certo?
Portanto, temos o estudo (a ciência) e o objeto de estudo (a religião) assim como poderia ser o trabalho, a família, a escola, etc.
É importante que fique claro que ao estudarmos a religião não estamos fazendo uma psicologia religiosa. Jung, por exemplo, publicou um livro chamado Psicologia da Religião Oriental e Ocidental. Isso é diferente de uma psicologia cristã, ou seja, de utilizar o lugar de produção da ciência para defender uma ou outra fé.
Como cientista da religião, como psicólogo da religião, posso dizer que uma pessoa cristã acredita que Jesus Cristo é Deus e que Ele vai voltar. Ao dizer esta última frase eu estou descrevendo a crença de uma pessoa cristã. O que não significa que sou cristão porque eu estudo a psicologia cristã (posso até, pessoalmente, ser, mas isso não deve afetar minha produção acadêmica).

Moralidade e religião
Fiz toda essa introdução porque um dos campos mais ricos em discursos e práticas sobre a moralidade é justamente a religião. Um budista que almeja se tornar monge, antes de lhe ser permitido costurar rakusu (o manto de monge) deve fazer os votos de que seguirá os cinco preceitos:
1.
Eu tomo o preceito de abster-me de matar seres vivos.
2.
Eu tomo o preceito de abster-me de tomar o que não for dado.
3.
Eu tomo o preceito de abster-me de comportamento sexual impróprio.
4.
Eu tomo o preceito de abster-me da linguagem incorreta.
5.
Eu tomo o preceito de abster-me do vinho, álcool e outros embriagantes que causam a negligência.
Também encontramos preceitos parecidos nos 10 mandamentos que são a norma do judaísmo e cristianismo.
Uma questão a pensar é: por que motivo as religiões trazem sempre estes preceitos morais?

A visão externa e a visão interna
Olhando de fora, muitos pesquisadores argumentaram que o objetivo da criação dos preceitos e regras de moralidade presentes nas religiões se justifica para que a sociedade não vire um caos. Imagine uma cidade que tivesse uma religião cuja regra fosse: mate à vontade, roube, minta, traia… certamente essa cidade seria uma cidade muito complicada de viver.
Na medida em que muitas pessoas ainda fazem maldades semelhantes, na opinião destes pesquisadores, pareceu imprescindível que as religiões criassem essas normas. Fazendo uma outra pequena analogia: seria como se você fosse o sindico ou síndica do seu prédio e precisasse definir regras de bom convívio. Se, por exemplo, a regra da perturbação do sossego não existir, qualquer um poderá dar uma festa com música alta até altas horas da madrugada. Obviamente, isso causará desarmonia e problemas entre os vizinhos.
Olhando de dentro, alguns pesquisadores apontam que a moralidade visa trazer felicidade e paz. Se somos honestos em nossa fala (se não mentimos), não vamos perder o sono pensando se a mentira que contamos será descoberta. Se não roubamos, não vamos ficar preocupados de sermos investigados pela polícia ou presos… e assim por diante.
Uma regra que resume a moralidade está presente na filosofia de Kant e na chamada regra de ouro: não faça com os outros aquilo que você não quer que seja feito com você.

Como lidar com moralidade e desejo
Infelizmente a pessoa que fez a pergunta não esclareceu qual desejo. Pensando de um modo geral, talvez surja a ideia de que um desejo possa vir a se chocar com a regra moral.
Se estou em uma situação de muita vulnerabilidade e pobreza e estou com fome, posso ter o desejo de pegar uma comida sem permissão (roubo ou furto). Nesse caso, vemos que há uma necessidade (de se alimentar) e uma regra que teoricamente impede que a necessidade se supra.
A forma mais simples que encontramos para aprender a lidar com o desejo quando isto vem a acontecer é:
1)      Reconhecer a necessidade por trás do desejo
2)      Pensar no longo prazo
3)      Encontrar a melhorar estratégia para suprir a necessidade de modo a causar felicidade, para mim e para as outras pessoas que possam estar envolvidas, no presente e no futuro
No exemplo anterior, se eu roubar o alimento, satisfaço a vontade. Porém, causo problemas para mim e para uma ou mais pessoas. Talvez seja pego pela polícia, talvez não. De qualquer forma, a consciência moral vai me apontar o meu erro e certamente não ficarei tranquilo e em paz.
Portanto, decido não roubar. Mas a necessidade continua. Aí que entra o passo 3. Procuro encontrar uma estratégia, uma forma de suprir a necessidade de maneira que não cause sofrimento para mim no presente e no futuro, nem para um terceiro no presente e no futuro. Se pedir o alimento, e receber de boa vontade, estarei suprindo a necessidade e não estarei causando mal a mim nem ao outro.
Outro exemplo: digamos que eu deseje tomar vodka. É um desejo contrário à moralidade.
1)      Reconhecer a necessidade por trás do desejo: a necessidade nesse caso talvez seja relaxar
2)      Pensar no longo prazo: Pensando no longo prazo, vejo que se tomar vodka hoje posso até relaxar no curto prazo, mas no longo prazo vou estar causando dano ao meu corpo, o que provocará doenças e infelicidades. Também pode gerar brigas, discussões e desarmonias com outras pessoas.
3)      Encontrar a melhorar estratégia para suprir a necessidade de modo a causar felicidade, para mim e para as outras pessoas que possam estar envolvidas, no presente e no futuro: se o que eu quero de verdade é relaxar (e não tomar uma bebida), consigo tranquilamente encontrar uma forma como fazer um exercício físico, uma Yoga, uma meditação, etc.

O falso refúgio

Uma das práticas do Programa de Prevenção de Recaída Baseado em Mindfulness (em atenção plena, MBRP) é chamada de falso refúgio. Em certos momentos, notamos no nosso corpo e nas nossas emoções que algo não está legal. Um desconforto, um incomodo, um sentimento negativo.
No piloto automático, na impulsividade, chegamos a fazer muitas coisas que depois nos arrependemos. Da mesma forma que no exemplo da vodka, eu posso estar triste e comer muito chocolate e depois passar mal.
Se refletir o que queria com o chocolate (conforto, carinho) vou ver que exagerar no chocolate foi um falso refúgio. Durou no curto prazo, acabou logo, e não me trouxe realmente o que queria (conforto, carinho).
A maioria das religiões possui a ideia de um paraíso e de um inferno. Fenomenologicamente, como cientista da religião, entendemos que a ideia de retorno das ações ajuda nessa percepção do falso refúgio.
De que adianta fazer algo que parecia prazeroso ou benéfico agora se o resultado final será negativo, destrutivo, causará infortúnio e infelicidade?
Fonte: www.psicologiamsn.com