Provocar
'briga entre células' e outros truques da evolução humana que podem ajudar na
luta contra o câncer
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Kaulitzki / Alamy Stock Photo Image caption O melhor que uma célula se divide,
mais bem sucedida ela será
Será que algum dia venceremos a guerra contra o
câncer?
As mais recentes estatísticas mostram o quão
distante estamos de uma vitória. Nos Estados Unidos, o risco de desenvolver
câncer é de 42% em homens e 38% em mulheres, de acordo com American Cancer
Society. Os números são ainda mais sombrios no Reino Unido: 54% dos homens e
48% das mulheres terão câncer em algum ponto de suas vidas.
E os casos só aumentam: no ano passado, 2,5 milhões
de pessoas morando no Reino Unido tinham a doença, de acordo com números de uma
das principais ONGs de amparo às vítimas da doença, a Fundação Macmillan. Isso
representa um crescimento de 400 mil casos em comparação com 2010.
As estatísticas mostram que o câncer está ficando
mais e mais comum. Mas por que tantas pessoas desenvolvem a doença em algum
ponto de suas vidas? Para conseguirmos uma resposta, precisamos entender que o
câncer é um efeito colateral infeliz do processo evolucionário.
Animais grandes e complexos são vulneráveis ao
câncer justamente porque são grandes e complexos. Mas embora a evolução tenha
ajudado a criar o problema, é com a ajuda dela que estamos vendo o surgimento
de tratamentos que podem colocar os prognósticos a nosso favor.
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Science / Alamy Stock Photo Image caption Células cancerosas fogem ao padrão de
controle da multiplicação
Para entender o câncer, precisamos analisar um
processo fundamental que ocorre em nosso organismo: a divisão celular. Nossas
vidas começam quando um espermatozoide e um óvulo se encontram e se transformam
em uma bola contendo algumas centenas de células. Quando atingimos a vida
adulta, 18 anos mais tarde, essas células se multiplicaram tantas vezes que os
cientistas não conseguem calcular precisamente quantas temos no corpo - o
número estimado é de 37,2 trilhões.
A divisão celular em nossos corpos é altamente
controlada. Por exemplo: quando suas mãos estavam crescendo, algumas células
"cometeram suicídio" - em um processo conhecido como apoptose - para
formar o espaço entre os seus dedos.
O câncer também envolve divisões celulares, mas com
uma diferença fundamental: uma célula cancerosa quebra todas as regras de
divisão controlada.
"É como se fossem um organismo diferente.
Quanto melhor e mais rápido essa célula conseguir se dividir e ganhar
nutrientes que suas vizinhas, o mais bem-sucedida será como um câncer",
explica o biólogo Timothy Weil, da Universidade de Cambridge.
A divisão celular é marcada por controle e comedimento,
mas a divisão de células cancerosas é uma proliferação selvagem e
descontrolada.
Células adultas estão constantemente sob rígido
controle", diz Weil. "Basicamente, câncer é a perda de controle
dessas células."
Essa divisão descontrolada só pode ocorrer se
alguns genes que impedem o crescimento celular acidental, como o p53, sofrem
mutações. Nossos organismos são muito bons para detectar as mutações. Temos
sistemas biológicos que são ativados para destruir a maioria das células
mutantes antes que elas nos causem danos.
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Stock Photo Image caption Mutações podem resultar em bilhões de células em um
tumor
Temos diversos genes corretivos que enviam
instruções para matar células comprometidas. "Milhões de anos de evolução resultaram
nisso. É um conceito ótimo, mas não é perfeito", afirma Charles Swanton,
do Instituto Francis Crick, no Reino Unido.
A ameaça vem do pequeno número de células corruptas
que não são detidas. Ao longo do tempo, uma delas pode crescer e se dividir em
milhares, depois, em dezenas de milhares. Eventualmente, pode haver bilhões de
células em um tumor.
Isso leva a um desafio: quando a célula mutante se
multiplica e se transforma em um tumor, uma pessoa terá câncer até que todas as
células cancerosas sejam destruídas. Se algumas sobrevivem, elas podem
rapidamente se multiplicar e resultar em outro tumor.
Células cancerosas não são todas iguais. Cada vez
que uma delas se divide, ela tem o potencial de desenvolver novas mutações que
afetam seu comportamento. Em outras palavras: elas evoluem.
À medida que células de um tumor passam por
mutações, elas ficam mais diversas geneticamente. É aqui que a evolução chega
às células mais cancerígenas.
A diversidade genética é "o tempero da vida, o
susbtrato sobre o qual age a seleção natural", diz Swanton, se referindo à
teoria de evolução por seleção natural, proposta por Charles Darwin em 1859.
Assim como espécies individuais - humanos, leões,
sapos e mesmo bactérias - ganham variação genética ao longo do tempo, o mesmo
se passa com as células cancerosas.
"Tumores não evoluem de maneira linear. Não há
duas células iguais em um deles", diz Swanton.
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Stock Photo Image caption O fumo é um fator de risco conhecido para o câncer
Na verdade, as células de um tumor estão evoluindo
para ficarem mais cancerosas. "Estamos, essencialmente, lidando com ramos
evolucionários que criam diversidade e condições para que as células resistam a
tratamentos", completa o especialista.
O fato de que tumores estão constantemente mudando
sua configuração genética é uma das razões pelas quais cânceres são tão
difíceis de "matar". Por isso, Swanton e colegas adotam uma abordagem
evolucionária no combate à doença.
Swanton, especializado em câncer de pulmão,
descobriu em suas pesquisas algo que espera ver resultar em tratamento eficaz e
localizado.
Pense na evolução de um câncer como se fosse uma
árvore com muitos galhos. Na base dessa árvore estão as mutações originais que
formaram o tumor em primeiro lugar - mutações comuns às outras células do
tumor.
Na teoria, uma terapia que atacasse alguma dessas
mutações básicas deveria destruir todas as células comprometidas. Já é uma
abordagem comum a alguns tratamentos. Um exemplo é a droga EGFR, usada no
tratamento de cânceres de pulmão.
O problema é que esses tratamentos não funcionam
tão bem como esperamos. As células comprometidas resistem porque algumas
desenvolvem uma mutação de resistência ao tratamento. Em outras palavras,
alguns dos galhos da árvore evoluíram de forma a ficar menos vulneráveis a
ataques ao "tronco".
Um tumor, em média, pode conter um trilhão de
células cancerosas, e algumas podem ter evoluído de forma a ficarem imunes a
ataques contra mutações básicas.
Mas e se um tratamento tivesse como alvo duas
mutações basais ao mesmo tempo? Menos células são capazes de evoluir de forma a
ficar imunes a ambas as formas de ataque.
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Alamy Stock Photo Image caption Exposição ao sol também traz riscos
Swanton e seus colegas analisaram os números para
ver quantas mutações no "tronco" teriam que atacar simultaneamente
para se assegurar de que poderiam destruir todas as células cancerosas. Três
foi o número mágico encontrado. Os cálculos sugerem que o ataque concentrado
neste trio "cortaria o tronco" e "derrubaria" a árvore.
Mas não é uma abordagem barata. Para que ela
funcione, os pesquisadores precisam estudar o câncer específico de uma pessoa
para estabelecer qual é a base de seu tumor, para que o coquetel apropriado de
drogas seja aplicado.
Alberto Bardelli, especialista em câncer colorretal
da Universidade de Turim, na Itália, também tem usado teoria evolucionária como
inspiração para uma solução com o objetivo de superar a resistência das células
cancerosas a drogas.
Seu trabalho consiste em "provocar" as
células cancerosas resistentes: pacientes recebem determinadas terapias e
depois são monitorados para ver quando uma determinada célula cancerosa se
destaca no tumor porque desenvolveu resistência.
O tratamento remove a pressão evolucionária que
antes permitia à célula ser bem-sucedida. Sem essa pressão, outros tipos de
células cancerosas têm chance de aparecer e "lutam" contra a
dominante. O câncer declara guerra a si mesmo.
Quando as células insurgentes ganham espaço, é hora
de ministrar as drogas mais uma vez, já que essas células não devem ainda ter
desenvolvido resistência.
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Library Image caption Células cancerosas desenvolvem resistência a terapias
"Jogamos célula contra célula e esperamos as
vencedoras para depois interromper o tratamento. As vencedoras começam a
desaparecer e outras a substituem. (...) Quero usar essas células que não são
afetadas pela terapia para lutar com as outras".
A equipe de Bardelli começará os testes em
pacientes nos próximos meses.
Ao mesmo tempo, é importante entender melhor o que
causa cânceres. Em 2013, um dos mais complexos estudos genéticos deu um passo
importante nessa direção. Pesquisadores vasculharam o genoma de pacientes para
encontrar vestígios das 30 mutações mais comuns associadas ao câncer. Elas são
pequenas mudanças químicas no DNA em cânceres que incluem os de pulmão, pele e
ovário.
Andrew Biankin, cirurgião da Universidade de
Glasgow, foi um dos pesquisadores envolvidos. Ele diz que era possível
encontrar marcas dos danos provocados ao código genético. "Em um câncer de
pele como o melanoma, podemos ver evidência de exposição à radiação
ultravioleta. No câncer de pulmão, podemos ver a 'assinatura' do ato de
fumar", explica Biankin.
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PASIEKA/SCIENCE PHOTO LIBRARY Image caption Terapias mais modernas podem
"dissolver" as células
Como são vestígios conhecidos, o time pôde ver
padrões de formação de cânceres incomuns, em que a causa não estava muito
clara. "Os esforços estão agora em descobrir quais são essas causas".
Outros especialistas afirmam que é importante
priorizar a prevenção. Isso porque há fatores de risco conhecidos, como
queimaduras de sol e o fumo. Otis Brawley, médico-chefe da American Cancer
Society, diz que prestar atenção aos riscos pode prevenir a formação de muitos
cânceres.
Ele cita duas estatísticas impressionantes: em
1900, a taxa de mortalidade para o câncer nos EUA era de 65 em cada 100 mil
pessoas, proporção que, em 1990, já tinha chegado a 210 em cada 100 mil.
"Algo tem que estar causando esse aumento. Se
você remover a causa, você pode diminuir os casos de câncer", diz Brawley.
Os EUA viram um declínio de 25% na mortalidade por
câncer nas últimas duas décadas. Segundo Brawley, mais da metade da diminuição
foi influenciada por atividades de prevenção. Mas ao mesmo tempo em que se
comemora a queda da mortalidade, o número de diagnósticos aumentou. Por um
lado, isso pode ser mérito de melhores técnicas de detecção, como no caso do
câncer de próstata, mas também pode ser algo relacionado, ironicamente, ao
aumento na expectativa de vida humana.
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caption Pesquisadores comparam evolução de cânceres ao crescimento de uma
árvore
Se você viver muito, você vai ter câncer", diz
Biankin.
Para Bardelli, quem quiser viver mais de 70 anos
terá que aceitar desenvolver câncer um dia. Ele argumenta que nossas células
não evoluíram para manter a integridade de nosso DNA por um tempo compatível
como nossa longevidade.
Brawley é ainda mais incisivo e diz que todo mundo
com mais de 40 anos em algum ponto terá uma mutação que poderá resultar em um
câncer. Isso parece alarmante, mas nosso mecanismo de defesa natural normalmente
será capaz de destruir as células cancerosas.
Enquanto isso, a ciência também evolui.
"Não tenho a menor dúvida de que vamos vencer
o câncer", diz Bardelli.
Fonte: BBC Brasil