Maior cadeia do Brasil tem favela e área 'Minha cela, minha vida' para
presos VIP
Localizado a 7 km do centro do Recife, o Complexo do Curado é o maior do
Brasil em população carcerária
Presos da maior penitenciária do Brasil em
Pernambuco construíram uma favela dentro dos pátios com setores conhecidos como
"Minha cela, minha vida" ─ nome inspirado no programa federal Minha Casa,
Minha Vida ─, espécie de "área VIP" destinada aos detentos próximos
do comando do narcotráfico local e, por isso, conseguem pagar pelo
"aluguel".
Este foi o cenário que dois juízes e outros dois
advogados da Corte Interamericana de Direitos Humanos testemunharam na última
semana em visita ao Complexo do Curado, que abriga mais de 7 mil presos, embora
tenha capacidade para no máximo 1,8 mil.
Localizado a 7 km do centro do Recife, o presídio é
o maior do Brasil e um dos maiores da América Latina quando o assunto é
população carcerária.
Com um número insuficiente de agentes
penitenciários ─ cerca de 300 ─ para dar conta das três unidades prisionais que
compõem o complexo, o Curado coleciona denúncias de violação extrema de
direitos humanos e, segundo especialistas, põe em risco a vida de cerca de 100
mil pessoas que vivem nas imediações.
Para conseguir uma vaga na "área VIP", o
detento precisa pagar cerca de R$ 120 por semana. O espaço consiste em favelas
construídas dentro dos pátios das três unidades prisionais.
"Você conhece um 'chaveiro' que te indica à
direção (do presídio) para ser transferido, e aí você negocia o aluguel com
ele", diz relato descrito pelo pesquisador da ONG Justiça Global,
Guilherme Pontes, que acompanhou a visita dos juízes da Corte, em 8 de junho.
Milícia dos chaveiros
"Chaveiros" é o termo que designa os
próprios presos responsáveis pela administração do presídio para desempenhar
funções de agentes de segurança, em razão da escassez de carcereiros.
Em sua maioria, são acusados de pertencer a grupos
de extermínios, formam coletivos conhecidos como "milícia dos
chaveiros" e ganham status de autoridade para supervisionar e controlar
pavilhões inteiros.
Eles, literalmente, têm a chave da cadeia,
determinando quem pode ou não negociar drogas, e aplicam castigos e torturas,
além de cobrarem taxas de manutenção ou "pedágio", segundo os relatos
obtidos na visita da Corte.
"Os chaveiros são figuras bem explícitas
mesmo. São as pessoas responsáveis por manter a disciplina em cada
pavilhão", afirma Pontes.
O representante da Justiça Global narrou como foi a
visita de membros da Corte e trechos de conversa que teve com detentos que
vivem no "Minha cela, minha vida" em uma das unidades.
"O Curado é um presídio muito particular, as
situações são extremas ali. A parte apelidada de 'Minha cela, minha vida' seria a área VIP. São barracos de celas autoconstruídos de madeira e alvenaria, uma
espécie de favelinha dentro do complexo prisional com becos, barracos de dois
andares. Estar lá foi, de fato, impressionante, muito inusitado", destaca.
Pontes diz que os integrantes da Corte reagiram com
surpresa à situação. Em um dos espaços vivem cerca de 200 presos que
compartilham apenas três banheiros. Os barracos são coletivos, às vezes com
cinco presos dividindo dois colchões.
"Os becos do 'Minha cela, minha vida' são a
céu aberto. Diante da superlotação do presídio, aqueles que não conseguem
financiar um lugar tido como privilegiado são mandados para dormir na 'BR', que
é a forma como se referem aos corredores dos pavilhões fechados", diz
Pontes.
Há pavilhões em que presos cavam buracos na parede,
as "tocas", para servir de cama. Há também celas menores de 4 metros
quadrados que, para acomodar grupos de dez pessoas, constroem mezaninos de
madeira.
Chamada 'Minha Cela Minha Vida', essa é a 'área VIP' do presídio, onde
detentos pagam para 'fugir' da superlotação
Em nota, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos
de Pernambuco informou à BBC Brasil que, na visita, foram apresentados à
comitiva planos de urgência e emergência realizados nas três unidades
relacionados à saúde, segurança e garantia dos direitos humanos aos presos.
"Achei a visita bastante positiva, pois
tivemos a oportunidade de apresentar à Corte as melhorias já realizadas e
programadas nos presídios", diz o secretário estadual de Justiça e
Direitos Humanos, Pedro Eurico.
Primeira visita da Corte a prisões
Foi a primeira vez que os membros da Corte IDH
inspecionam uma prisão nas Américas. Segundo a Justiça Global, várias áreas do
complexo foram "maquiadas" para a vistoria dos juízes.
"Algumas partes do presídio foram reformadas e
pintadas para a visita da Corte. Fizeram obras em tempo recorde. A enfermaria
foi melhorada, ampliaram a área da padaria para o trabalho dos presos. Sabemos
que muitos setores foram pintados pelos próprios presos. Houve mobilização para
melhorar a aparência do presídio", declara Pontes.
"O Curado está completamente
comprometido", diz o promotor de Justiça da Vara de Execuções Penais de
Pernambuco, Marcellus Ugiette, ao defender o fim do complexo.
"Não só a vida dos presos está comprometida lá
dentro, como está afetando a vida e a segurança da comunidade em volta. Vemos
condições precaríssimas. Esse tipo de tratamento não socializa. O Estado deixou
o mal tomar conta das prisões."
A resolução do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária recomenda que o número de agentes seja de um para cada
cinco presos ─ o que, na atual condição do Curado, exigiria 1,4 mil agentes, em
vez dos 300 atuais. Além disso, prevê defensor público, para cada 500 detentos,
o que daria 40 defensores, 13 a menos do que a equipe atual.
Promotores estimam que o número de
"chaveiros" ali seja equivalente à quantidade de agentes carcerários.
Facões, armas e denúncias
Além disso, a quantidade de armas que circula
dentro dos pavilhões é alarmante, diz o promotor. Só neste ano, mais de mil
facões foram recolhidos. Hoje, estima-se que os presos tenham 30 armas de fogo
─ entre pistolas e revólveres.
Há relatos de que moradores dos bairros nas
imediações foram mortos por disparos feitos de dentro do Curado. Em caso
registrado há cerca de duas semanas, bombas lançadas no presídio destruíram 30
casas a 40 metros de distância, deixando feridos.
Desde 2008, o Estado brasileiro é denunciado por
problemas como superlotação carcerária. Em setembro de 2015, a Corte
Interamericana julgou o governo de Pernambuco por denúncias de superlotação e
maus tratos.
Em outubro passado, a Corte ordenou ao país a
adoção de medidas como a eliminação do tráfico de armas no presídio e das
figuras dos "chaveiros", o fim da superlotação, acabar com as
inspeções vaginais e anais nos visitantes, assegurar acesso aos serviços de
saúde, evitar propagação de doenças contagiosas e, por fim, que o Estado
retomasse o controle do complexo.
Desde 2008, o Estado brasileiro é denunciado por problemas como
superlotação carcerária
A visita da Corte ao Curado tinha como objetivo
acompanhar de perto a implementação dessas resoluções. Segundo Pontes, da
Justiça Global, é "flagrante" que muitas dessas medidas não foram
cumpridas pelo governo do Estado.
A ação que deu origem ao processo na Corte IDH foi
feita por uma coalizão formada entre a Pastoral Carcerária, o Serviço Ecumênico
de Militância nas Prisões, a Justiça Global e a Clínica Internacional de
Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard.
Durante quatro anos, a coalizão de organizações
catalogou centenas de violações à dignidade humana dos presos, funcionários e
visitantes do Curado.
Outras denúncias
Antes de o caso chegar à Corte, foi primeiro
denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos (OEA), com sede em Washington, que constatou pela primeira
vez as denúncias em 2008.
O então presídio Professor Aníbal Bruno, com 3,8
mil presos e capacidade para 800, passou por reformas de R$ 30 milhões como
resposta às recomendações da Comissão e, assim, a estrutura foi dividida em
três unidades, o que deu origem ao Complexo do Curado.
Segundo Ugiette, a reforma serviu "para dar
uma resposta maquiada à OEA. O que era ruim, ficou pior. Multiplicaram-se o
número de chaveiros, de desmandos, a entrada de armas e o tratamento
indigno".
Em 2011, novas denúncias sobre as violações de
direitos humanos ocorridas no Complexo do Curado foram apresentadas à Comissão,
que determinou que o Brasil adotasse medidas para sanar os problemas.
A situação agravou-se e, em 2015, passou para as
mãos da Corte IDH, que decretou medidas provisórias a serem adotadas de forma
urgente. Os autos do processo internacional contêm 268 denúncias, dentre as
quais 87 são de mortes violentas.
Nas próximas semanas, a Corte deverá emitir uma
resolução que poderá implicar em novas determinações ou na condenação do Estado
brasileiro ─ o efeito prático disso não é muito claro, mas pode resultar em
multa, em determinação judicial para que o problema seja corrigido ou em um
constrangimento internacional para o Brasil.
Na opinião do promotor, a presença dos juízes no
Curado representa uma "pressão positiva" para que Estado brasileiro
seja cobrado mais intensamente.
Segundo nota do governo pernambucano, "desde o
início (em 2015) do governo Paulo Câmara (PSB), o Estado respondeu todas as
consultas feitas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização
dos Estados Americanos".
Fonte BBC Brasil
Gaspar Moura dos Santos